31.7.10

“Arquipélago”1

Da insularidade como prática



vista da exposição "Arquipélago", SNBA, Lisboa, 1985
Foto: Arquivo Pedro Calapez


De entre as noites no Frágil ou no Trumps, os almoços e os jantares, os corredores da ESBAL, alguma agitação ideológica, inúmeras e variadas colaborações criativas, festas privadas, visitas de ateliê, no fundo, de entre a partilha intensa da arte e a partilha intensa da vida, emerge uma geração de artistas. Uma geração que, através de uma estrutura gregária erigida sob a forma de grupo, se afirma fortemente e ajuda a afirmar, em Portugal, um novo território: o Território do Contemporâneo. 2


Do contexto

Quando olhamos, com a distância que nos confere o tempo, para a década de 80 do século passado, em Portugal (no que à Cultura, em geral, e à Arte, em particular, diz respeito), verificamos ter sido, de facto, uma década consignada a largas e profundas alterações. O processo de transformação social e ideológica, desencadeado pela revolução de 1974, só tem efeitos visíveis, no domínio da arte e da prática artística, a partir do início da década seguinte; até aí, assistia-se a uma sobredeterminação, nas práticas do fazer artístico, dos discursos teóricos e das questões ideológicas, políticas e político-partidárias. Por exaustão, surgem naturalmente no início da década de 80 as primeiras reacções dos artistas, que abandonam as questões da representatividade social e dos discursos ideológicos e passam a interessar-se por trabalhar exclusivamente dentro do domínio da arte e das questões inerentes à prática artística, procurando responder de forma autónoma às suas pulsões individuais. No que respeita à relação com as instituições, mantém-se a recusa face à figura tutelar da Academia e muitos artistas, embora tendo passado pela ESBAL, acabam por não concluir os seus percursos académicos. Com as restantes instituições -- poucas, neste período, para além da Secretaria de Estado da Cultura, Sociedade Nacional de Belas Artes e Fundação Calouste Gulbenkian (ainda que a abertura do Centro de Arte Moderna da FCG, em 1983, tenha, de forma cautelosa, ocupado um espaço até aí vazio) --, a relação era pautada por um cinismo saudável que levava estes artistas a utilizar as instituições sempre que lhes era possível e da forma que lhes era mais conveniente e vantajosa, pelo que, segundo compreendemos, o acesso não seria naturalmente o mais facilitado.

Os processos de legitimação das suas práticas eram veiculados pela forte relação que mantinham entre si e com algumas figuras do meio, suas contemporâneas (que, com eles, partilhavam os mesmos interesses, os mesmos hábitos, a mesma vivência, as mesmas intenções), pela necessidade voraz de consumirem informação, pela urgência de actualidade da sua prática, pela forma sôfrega e viva como partilhavam as suas experiências e as descobertas que ocorriam no decurso do desenvolvimento do seu trabalho, por uma espécie de egoísmo partilhado e cúmplice, enformado por uma atitude irónica e bem-disposta. A tudo isto se pode somar uma alteração na postura de relação com o meio, com o público e com o mercado, pautada por uma atitude afirmativa e independente em relação às gerações anteriores e por uma recusa na identificação de antagonistas ou opositores.

 

Do grupo

No âmbito deste artigo, interessa-nos circunscrever a análise a um colectivo de artistas que, embora tendo recorrido à estratégia grupal como modo de apresentação pública do seu trabalho, nos primeiros anos da sua actividade, cedo revelou intérpretes individuais activos e responsáveis por esta teia de alterações no contexto nacional a que acabámos de fazer referência. Referimo-nos ao conjunto de artistas que ficou vulgarmente arrumado na História da Arte, e no decorrer da exposição homónima, como grupo Arquipélago: Ana Léon, José Pedro Croft, Pedro Calapez, Pedro Cabrita Reis, Rosa Carvalho e Rui Sanches.

Numa entrevista concedida a Alexandre Melo e a João Pinharanda, publicada no Expresso, em 1983, é fixado um momento incomum de afirmação, de contornos algo provocatórios: “Nós somos os melhores!”. Hoje, resulta necessária a análise das circunstâncias e do contexto em que foi proferida esta afirmação. Segundo José Pedro Croft: “‘Nós somos os melhores’ era uma convicção que não passava pela rivalidade. Era uma convicção de que aquilo que nós fazemos é o melhor, porque é o melhor que temos para dar, é o melhor que temos para viver, e portanto não há melhor que isto. Eram termos absolutos, não eram relativos”. Para Ana Léon, “a frase funcionava, porque era preciso provocar e agitar, mas no fundo acabava por ser conscientemente assumida por todos”.

Tendo partilhado os anos de formação na ESBAL (à excepção de Rui Sanches que realiza a sua formação no Goldsmiths College, em Londres, e depois na Yale University, nos EUA), enquanto alunos e membros activos da Associação de Estudantes, com ligações à revista Arte-Opinião3, estes artistas cedo iniciam o seu percurso de colaborações criativas a par de outras actividades de carácter mais mundano, ligadas à frequência de espaços de lazer nocturnos -- caso das discotecas Frágil e Trumps -- onde se iam cruzando com inúmeras outras personalidades da vida cultural lisboeta.

Na opinião de Alexandre Melo, esta dinâmica “resulta de uma grande necessidade, que era sentida, nessa altura, por todas as pessoas mais ou menos da nossa idade, de viver, construir, fazer parte daquilo que se está a fazer”. Melo afirma ainda que, “quando comecei a escrever umas primeiras hipóteses de peças jornalísticas, ou quando começámos a conseguir conquistar espaço para escrever peças jornalísticas ou críticas, sintonizadas com essas novas dinâmicas, uma das nossas principais metodologias de trabalho era identificar grupos de pessoas com os quais poderíamos ter cumplicidades suficientemente fortes em relação a estas motivações e aspirações culturais e artísticas para, conversando e discutindo com eles, escrevendo sobre aquilo que estavam a fazer, podermos começar a configurar a tal nova conjuntura artística e cultural em emergência”..

Neste período, e ao contrário do que aconteceu com outros grupos de artistas (refira-se, a título de exemplo, os que povoaram, sobretudo, a primeira metade do século XX), estas associações apresentadas sob a forma de grupos não eram motivadas por crenças ideológicas, programas conceptuais ou manifestos. O que unia estes artistas em torno das suas práticas era, para além da amizade e de uma natural partilha de afinidades, uma vontade maior de construção e de superação e um genuíno interesse no acompanhamento do trabalho de cada um.

 

Das práticas colectivas

Movidos por uma enorme vontade de fazer e pela convicção profunda da intrínseca qualidade dos seus trabalhos, realizam a primeira exposição de grupo em 1982, no CAPC (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra). Aí, a convite de Túlia Saldanha, elaboram um projecto de mostra colectiva em que a relação estética e formal entre as obras é um dado fundamental e em que a montagem se assume, no espaço, como elemento determinante na procura de leitura da exposição como um todo coeso. Nesta primeira exposição, participam Ana Léon, Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez e José Pedro Croft, que recorda: “Aí, sim, houve uma grande cumplicidade e um fazer absolutamente extraordinário”. Para Calapez, “a montagem foi feita numa inter-relação e em todas as salas havia peças de todos os artistas. Todos os trabalhos estavam misturados”.

Na sequência desta experiência (verdadeiramente) colectiva, conceberam, em 1983, uma outra exposição para um espaço de uma seguradora, a Galeria Metrópole, em Lisboa. Aí, a preocupação com a montagem foi menos premente, embora as decisões tivessem sido tomadas colectivamente e fosse naturalmente possível, e legítimo, encontrar relações formais ou temáticas entre os vários trabalhos expostos. No âmbito da exposição, foi concebido e editado um catálogo, impresso em serigrafia, que não sendo um documento factual da exposição, existia como objecto artístico autónomo (cada um dos artistas desenhou o retrato de cada um dos colegas e esses desenhos terão sido depois editados em serigrafia e apresentados sob a forma de catálogo/ livro). Para além de Léon, Calapez, Croft e Cabrita Reis, junta-se-lhes, nesta exposição, Rosa Carvalho. E é com este colectivo, agora de cinco elementos, que regressam ao CAPC, em 1984, para uma exposição onde a autonomia das obras e dos percursos de investigação de cada um, são factores cada vez mais destacáveis e evidentes.

Entre as convicções partilhadas, estava o interesse pelo trabalho de outros artistas, mesmo de gerações anteriores e de terrenos de criação conceptualmente tão díspares, como Helena Almeida, Álvaro Lapa, Ernesto de Sousa, ou João Cutileiro e Noronha da Costa. Como recorda Croft, “havia figuras tutelares noutras gerações, e isto é muito engraçado, porque nós não queríamos nada usá-los como modelos, mas eles eram tutelares. Para nós eram luzes. Havia uma série de figuras pelas quais tínhamos a maior admiração intelectual e a maior ternura e empatia”.

Esta empatia e admiração intelectual era manifestada também em relação a artistas da sua geração, de que é exemplo a relação que mantinham com Rui Sanches que, embora tendo estudado fora do país, chegou a colaborar (à distância) com a revista Arte-Opinião. Desta relação, resulta o convite para incorporar o colectivo (perfazendo assim a totalidade dos seis elementos que popularizou a imagem do grupo) naquela que viria a ser talvez a sua colaboração mais visível, mais marcante mas também derradeira: a exposição “Arquipélago”.

 

Da exposição “Arquipélago”

A uma proposta do grupo dirigida à SNBA, em Lisboa, para a elaboração de uma exposição colectiva no espaço do salão, respondeu a instituição positivamente, e com a antecedência necessária, para que pudessem começar a delinear-se os contornos de uma mostra bem sucedida.

Segundo Pedro Calapez, “a vontade era fazer sempre cada vez melhor, cada vez maior, cada vez mais. Começámos em espaços pequeninos e agora queríamos agarrar aquele espaço”. Com a liberdade e apoio que lhes foi concedido pela direcção da SNBA, pretendiam realizar uma exposição onde pudessem dar a ver os seus trabalhos, da forma mais digna e interessante que lhes fosse possível, não tendo que ficar, por isso, reféns de nenhuma ideia de colectivo. Foram, nesse sentido, desenvolvendo o seu trabalho individualmente, encontrando-se, sempre que necessário, para reuniões de preparação da exposição. Rui Sanches recorda que “uma coisa de que falávamos muito era de uma ideia de profissionalismo” e Croft acrescenta: “Foi uma exposição toda preparada com muito cuidado, com fund raising, patrocínios e tudo”.

Concordando com João Pinharanda quando afirma que “a clareza de uma proposta pode começar logo pela escolha de um título”, debruçamo-nos sobre a escolha do substantivo “Arquipélago”, cuja significação é amplamente explanada nos textos do catálogo, nomeadamente na citação de um outro texto de Cabrita Reis, que Fernando de Azevedo coloca em epígrafe do seu, e que diz: “Na espessura da incomunicabilidade que nos une/ estamos sempre em afastamento permanente/ para bem próximas ilhas/ povoadas por sinais de alteridade,/ essência de uma certa história de cada um”. 4

“Desde o início, assumimos plenamente a singularidade do trabalho de cada um -- o que se reflecte, aliás, no título que demos à exposição”, afirma Rosa Carvalho e a análise de Bernardo Pinto de Almeida (também num texto incluído no catálogo): “A obra destes artistas, mais do que na singularidade das suas trajectórias e ritmos individuais, configura-se aqui, e sobretudo, no exprimir desse sentido de pluralidade e de contingência aventurosa, ao instaurar um espaço de entendimento e visão da obra de arte na sua essencial e irradiante diferença”.

Esta era portanto a premissa inicial que balizava a concepção de toda a exposição, isto é, justamente, a ausência de premissas que pudessem uniformizar a leitura do todo, bem como a criação das obras, por forma a que cada artista pudesse apresentar-se individualmente mas na possibilidade de vizinhança e diálogo com os outros. Neste sentido, e também porque pretendiam conferir ao espaço a dignidade que este lhes merecia, decidiram usar o salão completamente vazio partindo para um tipo de display, de alguma forma novo no contexto das exposições colectivas até aí apresentadas na SNBA. Isso permitia não só uma visualização total da exposição desde a entrada (excluindo qualquer percurso pré-determinado de leitura), como possibilitava múltiplos cruzamentos e linhas de tensão entre as peças, permitindo-lhes, no entanto, existir individualmente nos seus locais de familiaridade preferencial.

A exposição fez-se acompanhar pela edição de um catálogo (que pouco a documenta mas cujo contributo teórico -- sobretudo o texto de Maria Filomena Molder -- é francamente relevante para a compreensão tanto dos percursos de investigação que motivavam, à época, cada um destes artistas, como da rede de relações que, entre as suas obras, se pudessem eventualmente estabelecer). Alexandre Melo recorda que “havia uma noção, que aliás se manteve em muitos desses artistas, de ocupação total do espaço” e, neste sentido, parece-nos relevante realçar, aqui, a tendência monumental das suas intervenções, bem como uma certa relação genésica com as temáticas do espaço arquitectónico, do espaço físico e material, do espaço da existência humana ou do espaço geográfico e matricial de uma civilização que nos é a todos comum.

 

Do que ficou

À inauguração da exposição (a 28 de Novembro de 1985) terá acorrido, em peso, um público cúmplice e motivado, como recorda José Pedro Croft: “Todas as exposições que nós tínhamos tido até aí, e que culminaram com a exposição ‘Arquipélago’, eram uma festa. Centenas de pessoas na inauguração, como hoje em dia não há... Eram realmente acontecimentos. Vivíamos momentos de euforia”.

A par de um Porto servido todas as tardes aos visitantes, no decorrer da exposição, outros eram os motivos para juntar o público e a crítica em torno do evento. À reconhecida maturidade da proposta (no que à qualidade das obras apresentadas dizia respeito) aliava-se o carácter ambicioso e afirmativo do projecto no seu todo. Rui Sanches recorda que “algumas pessoas combinaram visitas acompanhadas (por exemplo, Julião Sarmento, levou lá o Juan Muñoz, a Margarida Veiga e mais algumas pessoas da SEC). Uma série de pessoas, que na altura não conhecia, quis falar connosco. Houve, de facto, uma atenção grande de pessoas de outras gerações e de pessoas ligadas às instituições”.

A exposição teve, de facto, um impacto real nas carreiras destes artistas, que, na sua maioria, começou a trabalhar com galerias, podendo ver assim reforçada a sua relação com o mercado. Também ao nível dos seus percursos criativos, este momento, a par de outros, é por eles identificado como relevante e estruturante das suas práticas (nalguns casos, o trabalho desenvolvido especificamente para o contexto da exposição permitiu-lhes testar, abrir novos caminhos ou abandonar outros). E, de acordo com as palavras de Croft, podemos seguramente afirmar que, em todos eles, se manifestava já a génese daquilo que viria a constituir o âmago da sua obra: “Acho que qualquer um de nós tinha um sentido de vida que depois veio a ser confirmado, que é o sítio onde cada um de nós está”.

Da prática artística surge naturalmente a necessidade de confrontação e todas as gerações de artistas tiveram e têm a necessidade de ver testado o seu trabalho publicamente, por relação ou confronto com o trabalho de outros. A exposição “Arquipélago” resultou, como vimos, do culminar de uma série de outras iniciativas colectivas mas, pelas circunstâncias que a envolveram, destacou-se indelevelmente no panorama da História da Arte Contemporânea Portuguesa, por ter ajudado a fixar um novo paradigma, acente num circuito iminentemente cosmopolita e em práticas consentâneas com as premissas da pós-modernidade. Como recorda José Pedro Croft: “Aquela exposição foi assim como uma sala de aeroporto onde nós convivemos e depois cada um foi apanhando o avião para o seu destino, para a sua casa. Num determinado momento, a casa foi aquela, uma casa comum”.



1. Do grego Archi, principal, e pélagos, mar. Antigo nome por que eram conhecidas, no mar Egeu, as numerosas ilhas que fazem parte do Mediterrâneo Oriental (à época, entre a península dos Balcãs, a Ásia Menor e Creta). Tornou-se posteriormente sinónimo de “grupo de ilhas”. in Grande Enciclopedia Portuguesa e Brasileira, vol III, Editorial Enciclopédia Limitada, Lisboa (pp.294-295)

 

2. Epressão pedida de empréstimo a Alexandre Melo, recorrente em alguns dos seu textos da época, nomeadamente: “Anos 80: o contemporâneo como território” in Expresso, Lisboa, 07 Dez. 1985; “Anos 80” in Arte Contemporânea Portuguesa, edição de autor, Lisboa, 1986 (pp.27-38) -- aqui com João Pinharanda

 

3. Revista editada pela Associação de Estudantes, sob a direcção de Pedro Cabrita Reis, na qual colaboraram esporadicamente José Pedro Croft, Pedro Calapez, Rui Sanches, Rosa Carvalho e Ana Léon


4. Reis, Pedro Cabrita, “Até ao Regresso” in Catálogo da Instalação na Galeria Diferença, Outubro 1981

 

ANA ANACLETO

Junho 2010



----------

AGRADECIMENTOS:

Alexandre Melo 

Ana Léon 

Bruno Marchand 

José Pedro Croft 

Pedro Cabrita Reis 

Pedro Calapez 

Rosa Carvalho 

Rui Sanches


----------

IMAGENS DO GRUPO

IMAGENS DA EXPOSIÇÃO

IMAGENS DA INAUGURAÇÃO


----------

ALGUNS DADOS SOBRE A EXPOSIÇÃO:


Título: “Arquipélago”

Local: Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa

Data de Inauguração: 28 Novembro 1985

Obras expostas:

ANA LÉON

Sem título, 1985

6 conjuntos de 3 desenhos a pastel de óleo sobre papel

75 x 108 cm (cada)

 

JOSÉ PEDRO CROFT

Sem título, 1985

Instalação com 5 esculturas em calcário

200 x 30 x 30 cm (cada)

 

PEDRO CABRITA REIS

Sem título, 1985

Técnica mista sobre madeira (políptico)

200 x 280 cm

 

Sem título, 1985

Técnica mista sobre madeira (políptico)

200 x 280 cm

 

Sem título, 1985

Técnica mista sobre madeira (políptico)

200 x 280 cm

 

Sem título, 1985

Técnica mista sobre madeira (políptico)

200 x 280 cm

 

PEDRO CALAPEZ

Sem título, 1985

Acrílico e grafite sobre madeira (tríptico)

200 x 240 cm

 

Sem título, 1985

Acrílico e grafite sobre madeira (tríptico)

200 x 240 cm

 

Sem título, 1985

Acrílico e grafite sobre madeira (tríptico)

200 x 240 cm

 

Sem título, 1985

Acrílico e grafite sobre madeira (tríptico)

200 x 240 cm

 

ROSA CARVALHO

Sem título, 1985

Óleo sobre tela

90 x 130 cm

 

Sem título, 1985

Óleo sobre tela

90 x 130 cm

 

Sem título, 1985

Óleo sobre tela

80 x 85 cm

 

Sem título, 1985

Óleo sobre tela

80 x 85 cm

 

Sem título, 1985

Óleo sobre tela

80 x 85 cm

 

Sem título, 1985

Óleo sobre tela

?

 

Sem título, 1985

Óleo sobre tela

?

 

RUI SANCHES

Retrato do Pintor, 1985

Madeira, contraplacado, gesso e ferragens

220 x 120 x 120 cm

 

Aqui e Ali, 1985

Madeira, aglomerado, contraplacado e gesso

200 x 500 x 300 cm

 

Alpheus, 1985

Madeira, contraplacado e PVC

150 x 250 x 160 cm

 

Flauta de Pã, 1985

(destruída)

 

Sem título, 1985

Técnica mista sobre papel

75 x 55 cm (cada)

 

Sem título, 1985

Técnica mista sobre papel

75 x 55 cm (cada)

 

Sem título, 1985

Técnica mista sobre papel

75 x 55 cm (cada)

 

Sem título, 1985

Técnica mista sobre papel

75 x 55 cm (cada)

 

Sem título, 1985

Técnica mista sobre papel

75 x 55 cm (cada)


----------

BIBLIOGRAFIA:

AAVV

Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. III, Editorial Enciclopédia Limitada, Lisboa

Almeida, Bernardo Pinto de

“6 Derivas” in Arquipélago, Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1985 (pp. 4-5)

Almeida, Bernardo Pinto de

“O centro fora do centro” in Artes e Leilões – Dossier Os Anos 80, nº3, Ano I, Lisboa, Fev-Março 1990 (pp.37-40)

Almeida, Bernardo Pinto de

in Pintura Portuguesa no século XX, Lello e Irmão Editores, Porto, 1993 (pp.196-199)

A.P.

“Pintura e Linguagem em debate em Letras” in Diário de Notícias, Lisboa, 27 Março 1984

Azevedo, Fernando

in Arquipélago, Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1985 (pp.2-3)

Barroso, Eduardo Paz (entrevista)

“Pedro Cabrita Reis: Desejo criar o irrepetível” in Jornal de Notícias, Porto, 15 Junho 1985

Coelho, Tereza

“Moda: Marcar um território” in Artes e Leilões – Dossier Os Anos 80, nº3, Ano I, Lisboa, Fev-Março 1990 (pp.49-50)

Frade, Pedro Miguel

“Fotografia: Uma década intensa e incómoda” in Artes e Leilões – Dossier Os Anos 80, nº3, Ano I, Lisboa, Fev-Março 1990 (pp.44-45)

Gomes, Paula Varela

“Arquitectura: Esta década teve vinte anos ou cinco” in Artes e Leiloe – Dossier Os Anos 80s, nº3, Ano I, Lisboa, Fev-Março 1990 (pp.46-48)

Gonçalves, Eurico

“Atitudes Audaciosas” in O Jornal, Lisboa, 09 Março 1984

Gonçalves, Eurico

“Os novos pintores portugueses” in O Jornal, Lisboa, 29 Junho 1984

Gonçalves, Eurico

“Os novos-novos artistas portugueses” in O Jornal, Lisboa, 21 Set. 1984

Gonçalves, Eurico

“1984: balanço – síntese” in O Jornal, Lisboa, 28 Dez. 1984

Gonçalves, Rui Mário

“Carta de Lisboa: Re-situar, Redefinir, Revitalizar ...” in Colóquio Artes, nº67, 2ªsérie, 27ºano, Dezembro 1985

Gonçalves, Rui Mário

“Pedro Calapez” in 100 Pintores Portugueses do séc. XX, Publicações Alfa, Lisboa, 1986 (p.250)

Gonçalves, Rui Mário

“Cabrita Reis” in 100 Pintores Portugueses do séc. XX, Publicações Alfa, Lisboa, 1986 (p.256)

Justo, José Miranda

“A propósito de um litoral e algumas atitudes” in Diário de Lisboa, Lisboa, 15 Março 1984

Machado, José Sousa

“Atitudes Litorais” in Artes e Leilões – Dossier Os Anos 80, nº3, Ano I, Lisboa, Fev-Março 1990 (pp.32-36)

Mauperrin, Maria José

“Artes Visuais: os novos mercados para a aventura” in Expresso, Lisboa, 08 Junho 1985

Melo, Alexandre

“Novos. Novos?” in Semanário, Lisboa, 04 Out. 1984

Melo, Alexandre

“Pedro Cabrita Reis: entre o destino e a pintura, a diferença é o homem” in Expresso, Lisboa, 13 Out. 1984

Melo, Alexandre

“Nova Iorque, Paris” in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, Ano V, nº146, 23 a 29 Abril 1985

Melo, Alexandre

“Anos 80: o contemporâneo como território” in Expresso, Lisboa, 07 Dez. 1985

Melo, Alexandre

“Os vértices do lugar” in Expresso, Lisboa, 27 Set. 1986

Melo, Alexandre

“Tópicos da Internacionalização” in Artes e Leilões, nº3, Ano I, Lisboa, Fev-Março 1990 (pp.29-31)

Melo, Alexandre

“Os Anos 80” in Arte e Artistas em Portugal, Instituto Camões/ Bertrand Editora, Lisboa, 2007 (pp.61-78)

Melo, Alexandre

“Pedro Calapez” in Arte e Artistas em Portugal, Instituto Camões/ Bertrand Editora, Lisboa, 2007 (p.178)

Melo, Alexandre

“Rui Sanches” in Arte e Artistas em Portugal, Instituto Camões/ Bertrand Editora, Lisboa, 2007 (p.180)

Melo, Alexandre

“Pedro Cabrita Reis” in Arte e Artistas em Portugal, Instituto Camões/ Bertrand Editora, Lisboa, 2007 (p.184)

Melo, Alexandre

“José Pedro Croft” in Arte e Artistas em Portugal, Instituto Camões/ Bertrand Editora, Lisboa, 2007 (p.186)

Melo, Alexandre / Pinharanda, João (entrevista)

“Pedro Cabrita Reis: Nós somos a coisa aonde vamos chegar” in Jornal de Letras, Artes e Ideais, Lisboa, Ano II, nº72, 22 a 28 Nov. 1983

Melo, Alexandre / Pinharanda, João

“Arte portuguesa: percursos de diálogo” in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, Ano V, nº144, 09 a 15 Abril 1985

Melo, Alexandre / Pinharanda, João

“Anos 80” in Arte Contemporânea Portuguesa, edição de autor, Lisboa, 1986 (pp.27-38)

Melo, Alexandre / Pinharanda, João

“Cabrita Reis” in Arte Contemporânea Portuguesa, edição de autor, Lisboa, 1986 (pp.68-70)

Melo, Alexandre / Pinharanda, João

“Pedro Calapez” in Arte Contemporânea Portuguesa, edição de autor, Lisboa, 1986 (pp.71-73)

Melo, Alexandre / Pinharanda, João

“José Pedro Croft” in Arte Contemporânea Portuguesa, edição de autor, Lisboa, 1986 (pp.74-76)

Melo, Alexandre / Pinharanda, João, Andrade, José Navarro de (entrevista)

“Novíssimos portugueses: Nós somos os melhores” in Expresso, Lisboa, 03 Dez. 1983

Molder, Maria Filomena

in Arquipélago, Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1985 (pp.11-15)

Pinharanda, João

“Arte Contemporânea na SNBA” in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, Ano V, nº178, 03 a 09 Dez. 1985

Pinharanda, João

“A exposição dos anos 80” in Artes e Leilões – Dossier Os Anos 80, nº3, Ano I, Lisboa, Fev-Março 1990 (pp.20-28)

Pinto, António Cerveira

“Um pouco de memória” in Artes e Leilões – Dossier Os Anos 80, nº3, Ano I, Lisboa, Fev-Março 1990 (pp.41-43)

Pomar, Alexandre

“Arquipélago” in Expresso, Lisboa, 23 Nov. 1985

Pomar, Alexandre

“Projectos de Escultores” in Expresso, Lisboa, 23 Nov. 1985

Pomar, Alexandre

“Arquipélago” in Expresso, Lisboa, 07 Dez. 1985

Porfírio, José Luís

“Discurso sobre quatro espaços” in Expresso, Lisboa, 17 Março 1984

Porfírio, José Luís

“Permanência e mudança em quatro obras cúmplices” in Expresso, Lisboa, 27 Set. 1986

Reis, Pedro Cabrita

“... do meu posicionamento perante a actividade plástica ...” in Atitudes Litorais, Faculdade de Letras, Lisboa, 1984 (p.36)

Rodrigues, António

“Carta de Lisboa: Fora e Dentro” in Colóquio Artes, nº74, 2ª série, 29º ano, Setembro 1987

Rodrigues, António

“Carta de Lisboa: 13 de Junho de 1988” in Colóquio Artes, nº78, 2ª série, 30ª ano, Setembro 1988

Rodrigues, António

“Carta de Lisboa I” in Colóquio Artes, nº82, 2ª série, 31º ano, Setembro 1989


----------

ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS:

Alexandre Melo

Crítico, Curador

(excertos de entrevista realizada em Maio 2010)

 

Para começar gostava de falar consigo sobre uma entrevista que o Alexandre e o João Pinharanda fizeram, no Expresso, em 1983, a um grupo, aliás a dois grupos de jovens artistas. Na altura no primeiro grupo estaria o Pedro Cabrita Reis, o Rui Sanches, o José Pedro Croft e o Pedro Calapez e no segundo, entre outros, o Pedro Casqueiro e a Ana Vidigal (ligeiramente mais novos). Eram todos ainda bastante jovens e já nessa altura diziam que pretendiam instaurar uma atitude nova, eles próprios tinham já uma atitude nova em relação às instituições, em relação ao mercado, em relação aos outros artistas das gerações anteriores.

Estando vocês, por um lado, tão próximos destes artistas, compreendo que lhes quisessem dar voz ... mas o que é que vos levou de facto naquele momento, enquanto responsáveis por um espaço dedicado à Arte e à Cultura, naquela publicação na altura, a dar voz a estes artistas tão jovens?

R: A dinâmica que nos levaria a conhecer esses artistas e depois a fazer uma série de trabalhos jornalísticos/ críticos com eles, e que depois se prolongaria por muitos anos (aliás até hoje) resulta daquilo que eu penso que possa ser a explicação mais essencial e mais geral. Resulta de uma grande necessidade, que era sentida nessa altura por todas as pessoas mais ou menos da nossa idade, de viver, construir, fazer parte daquilo que se está a fazer. O que é natural nesse período da vida das pessoas. No fundo faz-se a conjuntura em que se quer viver, ou contribui-se para poder viver numa conjuntura que seja aquela que nós queremos.

Eu penso que havia sobretudo a necessidade de sentir que fazíamos parte de uma nova conjuntura e de uma nova dinâmica cultural, e portanto a necessidade de a construir ou de contribuir para a construir, por demarcação, ou por distância, ou por afastamento quer às conjunturas pré-revolucionárias (portanto de todos os debates que vinham já dos anos 50, dos anos 60, com um conjunto de instituições e de protagonistas que ficaram muito imobilizados nos debates dessa época, com escolas muito imobilistas também – isto independentemente de haver sempre excepções e pessoas que se destacavam disso – com uma quase inexistência de instituições dedicadas à Arte Contemporânea, ou diria mesmo nenhuma na altura – o Centro de Arte Moderna terá aberto nessa altura mas mesmo o CAM era nessa fase bastante prudente na sua relação com a Arte Contemporânea). Era portanto uma situação em que não havia nada que correspondesse à tal conjuntura que nós desejávamos e à qual chamei nos meus textos: uma conjuntura contemporânea.

Pretendíamos portanto mostrar que esta geração e a nova dinâmica em que estávamos empenhados e a nova conjuntura que achávamos que lhe estaria associada e que nós próprios contribuiríamos para criar, não tinha nada a ver com essas velhas coisas dos anos 50 e 60 e também não tinha a ver com a conjuntura imediatamente anterior pós-revolucionária, porque a conjuntura pós-revolucionária, independentemente de ter comportado (e nós sabemos isso até melhor agora do que na altura) uma série de experiências artísticas que foram muito valiosas e enriquecedoras (e que se calhar algumas delas nós nem tínhamos acompanhado muito de perto), era de tal modo hiper-politizado, que todas as coisas que eventualmente tenham acontecido e que aconteceram, acabavam por (em termos de experiência social e cultural) serem vividas apenas sob a forma de lutas politicas, e político-partidárias, e de uma exaustão de lutas ideológicas (também elas muito anacrónicas, retrógradas e quase absurdas quando as analisamos hoje).

Portanto havia uma necessidade de estar e de fazer parte e de contribuir para que existisse uma conjuntura cultural – que nós chamávamos contemporânea, cosmopolita, etc – e que estivesse claramente depois quer de todas aquelas polémicas e imobilismos que nós considerávamos que já vinham dos anos 50 e 60, quer também algo que já estivesse depois de experiências da segunda metade da década de 70 e que, independentemente da importância que tiveram (aliás a importância delas ainda hoje se nota duma maneira muito forte na História da Arte Portuguesa) para nós, na nossa própria experiência social, na idade em que nós vivemos tudo aquilo, tudo isso estava completamente afogado numa exaustão de lutas político-ideológicas que também elas já nos pareciam absolutamente anacrónicas (e eram, como aliás se veio a perceber rapidamente).

Na sequência desse desejo, nós (quer eu quer o João, embora de maneiras diferentes) partilhávamos também um desejo de escrever a partir de uma cumplicidade real e efectivamente assumida com aquilo que se estava a passar e com as pessoas que estavam a fazer coisas. Eram textos mais jornalísticos, escritos completamente de dentro para fora. Nós identificávamo-nos, e até tornávamos isso explícito, gostávamos de trabalhar em conjunto com os artistas e fazíamos parte daquela dinâmica (embora, no fundo, essas cumplicidades entre os artistas e as pessoas que escrevem sobre arte sempre tenham existido, mas no nosso caso isso era assumido explicitamente e essa assumpção fazia parte da própria dinâmica e da especificidade da maneira de escrever).

Quando comecei a escrever umas primeiras hipóteses de peças jornalísticas, ou quando começámos a conseguir conquistar espaço para escrever peças mais jornalísticas ou mais críticas, sintonizadas com essas novas dinâmicas, uma das nossas principais metodologias de trabalho era identificar grupos de pessoas com os quais nós achávamos que tínhamos cumplicidades suficientemente fortes em relação a estas motivações e aspirações culturais e artísticas para, conversando com eles e discutindo com eles, escrevendo sobre aquilo que eles estavam a fazer, podermos começar a configurar a tal nova conjuntura artística e cultural em emergência.

Eu na altura, antes ainda dessas entrevistas, fiz entrevistas e escrevi algumas coisas sobre a vida nocturna, a vida mundana em Lisboa: novos bares, lojas, restaurantes que estavam a aparecer – o novo Bairro Alto. Aquilo a que ironicamente na redacção do Expresso chamavam as coisas nouveau intéressantes que era o nome de uma coluna numa revista francesa muito em moda na altura (a Actuelle). Ironicamente diziam que eu era especialista em coisas nouveau intéressantes, o que até corresponde, de uma forma caricatural, a essa sofreguidão em identificar coisas com as quais nos pudéssemos relacionar por forma a promover a emergência da tal nova conjuntura a que na altura nós chamávamos contemporânea. Foi portanto na sequência desse trabalho em curso que, através de um amigo comum, conhecemos uma nova geração de artistas que estavam a acabar a escola e que estavam a fazer umas primeiras exposições de grupo, ou outras individuais, e que eram completamente diferentes dos que os tinham precedido, tinham uma dinâmica nova (eram portanto pessoas que nós deveríamos conhecer) ... começámos a partir daí com entrevistas, conversas, textos, até hoje.

 

(...)

Em relação ao mercado na altura, e tendo em conta que estes artistas também se encontravam no início de carreira, acaba por ser muito surpreendente a forma como o mercado reage a estas novas propostas ou a esta nova atitude.

R: Bom, com a Revolução de 1974 o mercado da Arte praticamente acabou. Houve um boom de mercado no princípio dos anos 70 (que estava associado a factores económicos e a um período muito próspero de livre especulação bolsista e de grandes investimentos finaceiros) que depois, com a grande crise económica internacional de 73 tenderia a esboroar-se. Mas em Portugal esse factor foi ainda sobre-determinado pela Revolução Democrática e toda a agitação que se lhe seguiu e portanto não se estava a ver Bancos ou grandes empresas (que foram praticamente todas nacionalizadas) a comprar obras de Arte, nem estávamos a ver ninguém interessado em abrir lojas para vender obras de Arte ou mesmo não era imaginável que os próprios artistas pudessem pensar nisso porque havia a tal sobre-determinação de tudo pelas lutas politicas e ideológicas. Mas os artistas continuaram a trabalhar e, no início dos anos 80, com uma certa estabilização da situação económica no país (depois dos programas impostos pelo FMI no final da década de 70) começa a haver condições para que resurja um pequeno mercado de Arte embrionário em Portugal. Nós, aliás, tivemos sempre a posição de considerar que as galerias e os galeristas e uma dimensão económica do meio artístico, também faziam parte da dinamização da conjuntura cultural, ou seja, alguns galeristas também eram considerados por mim como fazendo parte dessa dinâmica e nessa medida podemos considerar que toda esta dinamização também servia para enquadrar e apoiar o trabalho de algumas galerias – basicamente os Cómicos e a Módulo. Entrevistei-os várias vezes e escrevi sobre quase todas as exposições deles durante um certo período.

Mesmo assim convém, para termos o sentido das proporções, dizer que comparada com a situação de hoje em Portugal (que não é propriamente gloriosa) a situação na altura era praticamente inexistente. Não se vendia nada, ou se se vendia era esporadicamente. Numa das primeiras exposições individuais que o Cabrita Reis fez na Diferença, no dia em que fechou a exposição ofereceu as obras todas às pessoas amigas que estavam lá (provavelmente a ajudar a desmontar a exposição). E mesmo em termos de apoios, de subsídios, de bolsas, de patrocínios, tudo isso eram raridades absolutas: eram aquelas bolsas da Gulbenkian, alguns apoios que vinham da SEC. Mas tudo isso eram coisas muito esporádicas. Nós dizemos sempre que hoje em dia o meio da Arte Contemporânea em Portugal é muito débil mas agora pelo menos já existe, temos alguns exemplos de todas as coisas e algumas delas até funcionam bem e já há uma rede de relações estabelecida entre essas coisas. Na altura, a maior parte dessas peças nem sequer existiam e as que existiam, poucas, funcionavam com muita dificuldade e quanto às relações estavam a começar a ser construídas mas tudo de uma forma muito precária.

Mesmo a questão da internacionalização (que era uma das nossas grandes apostas e obsessões, precisamente por causa da noção de cosmopolitismo e porque nos queríamos livrar daquele sentido de inferioridade nacional que já vinha desde o passado e que se prolongou ao longo de todo o século XX). Mesmo aí a questão das batalhas da internacionalização ficava por ir-se à ARCO a Madrid ou arranjar-se uma galeria ou uma exposição em Espanha. Levaram-se muitos anos para que isso deixasse de ser assim e foi uma coisa a pouco e pouco, um artista ou outro que conseguiram ir mais longe (antes de mais o Julião Sarmento e depois alguns outros, poucos, foram começando a ir mais longe). Mas quando nós vemos a situação hoje, só no que diz respeito por exemplo à relação entre Portugal e Espanha: há dezenas de artistas portugueses que fazem exposições em Espanha ou que têm relações com galerias espanholas ou que vendem em Espanha. Só comparando isso, a questão da internacionalização punha-se na altura em termos que, para mim, são quase caricatos: fazer-se reportagens extensíssimas sobre a ARCO todos os anos, de cada vez que um artista português era convidado para uma exposição de grupo no estrangeiro dava direito a uma pequena caixa. Hoje, apesar de todas as dificuldades que ainda existem, a transformação é tal que os mais novos nem acreditam.

 

(...)

De qualquer forma, quando pensamos no grupo – o Pedro Cabrita Reis, o Pedro Calapez, o José Pedro Croft, o Rui Sanches que entra justamente em 85 e não participa nas primeiras exposições do grupo, a Ana León e a Rosa Carvalho – e tendo em conta que os percursos individuais deles se vieram a revelar depois (com maior destaque para uns e menor para outros naturalmente), havia na altura, e para além das afinidades de que falámos há pouco, havia na exposição, até pelas decisões da montagem, uma nova abordagem e uma tentativa de criar novas possibilidades de diálogo entre as obras apesar de individualmente não haver critérios de familiaridade formal ou estética que as aproximasse. Gostava que falasse um bocadinho, daquilo que recorda, sobre a forma como a exposição estava montada, as obras que estavam presentes.

R: Eu não vejo fotografias da exposição há muito tempo e portanto não tenho uma memória muito viva em relação à disposição das obras no espaço. Aquilo que eu me lembro é que, em primeiro lugar havia uma noção, que aliás se manteve em muitos desses artistas, de ocupação total do espaço. Se não estou em erro a exposição não tinha divisórias, era completamente aberta, o que era uma coisa muito rara e não era a maneira habitual de fazer exposições na SNBA. Depois havia pontos de contacto relativamente fáceis de estabelecer entre, pelo menos, as obras do Cabrita, do Calapez, do Rui Sanches e do Zé Pedro Croft. A Ana Léon é um caso especial porque a Ana Léon vivia em Paris e eu conhecia muito mal o trabalho dela. A Rosa Carvalho sempre teve, e continua a ter, um trabalho absolutamente pessoal, único, original, que evidentemente funcionava perfeitamente naquele conjunto mas que não se pode considerar que tivesse relações formais muito óbvias com os outros.

Naquela altura todos os outros tinham uma preocupação (e que aliás até certo ponto continuam a ter) com as questões do espaço, com as questões da construção e mesmo com um determinado uso de materiais, fossem eles quais fossem, que reforçavam potenciais de diálogo.

Na altura, se não estou em erro, os trabalhos do Cabrita para essa exposição eram grandes portas de madeira que ele ia destruindo e reconstruindo e pintando. Era portanto um trabalho que partia de um determinado material que tem uma fisicidade própria e depois era um trabalho de destruição, construção, reconstrução, acoplagem, etc, etc.

O trabalho do Rui Sanches eram desconstruções artístico-arquitectónicas que criavam linhas de leitura no espaço, criavam equilíbrios e desequilíbrios e tensões no próprio espaço. Eram obras aliás muito boas, algumas delas eram mesmo das melhores que ele fez nesse período, que pelo tipo de tensões que criavam no espaço, só por si, já faziam a redistribuição das tensões entre as outras. As peças do Calapez na altura, se não estou em erro, também eram peças de referência arquitectónica. Eram umas pinturas com estruturas arquitectónicas e uma espécie de espaços desconstruídos. No Zé Pedro Croft, na altura, o material ainda era a pedra e também havia essa vertente arquitectónica.

Havia aliás em todos eles uma capacidade de ocupar o espaço, de marcar o espaço, de intervir no espaço, de construir e desconstruir espaços, seja na pintura com o Calapez, seja na escultura com o Zé Pedro, seja naquelas coisas que o Pedro Cabrita Reis fazia e que não sei muito bem como definir, seja até de uma forma mais analítica e sistemática no Rui Sanches. Portanto esse podia ser um ponto de contacto.

Mas o grande destaque em termos da montagem era, de facto, (e porque eles se conheciam bem e conheciam muito bem o trabalho uns dos outros) o conseguirem ocupar aquele espaço gigantesco com obras de 6 artistas completamente diferentes e aquilo funcionar muito bem.

 

Há uma certa tendência para a monumentalidade ...

R: É verdade. A referência à arquitectura, sob várias formas, era muito marcante neles todos ... mesmo no Cabrita, pelo simples facto de serem aquelas placas, aquela espécie de portas de madeira, estruturas de passagem.


(...)

Retirei uma citação de um texto seu, aliás muito eloquente, que diz: “A utilidade que haverá de conceder-se à compreensão dos deslocamentos que o trabalho destes artistas provoca em relação à conjuntura de viragem da década, não deve deixar esquecer que a grandeza maior do que foi e será feito, se haverá de avaliar não no acerto das contas ajustadas com o passado mas no modo como esse fazer souber acompanhar, cumular, antecipar ou transtornar o que a partir de cada dia de hoje – e desde sempre – cada um de nós, os da mesma idade da alma, tiver que fazer”.

Já falámos um bocadinho sobre isto, mas volto a perguntar-lhe de que forma é que acha que esta exposição, à luz até de tudo o que já se passou depois, se constituiu como o momento determinante nessa viragem de paradigma de que falámos à pouco?

R: O que eu penso é que essa observação é-me aliás extremamente abstracta porque a maneira como eu achava que seria possível falar daqueles artistas como grupo tinha de ser com um grande nível de abstracção. O que eu estava aí a dizer que era importante naquela exposição, desse pt de vista, é que quem ia ver a exposição não ia valorizar o facto conjuntural de aquilo ser algo que estava a estabelecer um discurso geracional qualquer em relação a coisas anteriores. Se olharmos para aquela exposição hoje não será necessário lembrarmo-nos do que fizeram os artistas dos anos 60 ou 70 para perceber aquela exposição, ou seja, de facto olhando para as obras e vendo o que lá estava, o que saltava à vista não era nenhum tipo de ajuste de contas com o que quer que fosse. Era já uma autonomização dos trabalhos, neste caso até já uma autonomização individual bastante forte embora com estes pontos de diálogo que nós sugerimos. Portanto o meu apelo (que é mais uma constatação) era basicamente que eles continuem a fazer o que querem e que eu quero, de acordo com o que nos está a acontecer ou que nós queremos que nos aconteça em cada momento. E que isso é que é importante, e não tanto criticar ou alimentar qualquer conflito geracional ou estético com qualquer coisa anterior.

 

Mas a leitura desse conflito é um facto inevitável. Não digo que fosse para eles um programa mas resulta da leitura da exposição e da leitura sobre a actividade do grupo, também um bocadinho isso.

R: Sim. Há uma frase, que eu já não tenho a certeza de quem a proferiu (embora possa calcular), numa destas entrevistas no Expresso em que é dito: “Preparamo-nos para declarar a inexistência do inimigo”. A questão era portanto mostrar que a afirmação deste grupo não era feita de uma forma dialéctica, era feita de uma forma inauguracional. Nós inauguramos um novo espaço, um novo “Arquipélago”, não precisamos de desenvolver uma dialéctica de ruptura, ou de revisitação, ou de combate, ou de revalorização de coisas anteriores. Nós instauramos um novo lugar, uma nova conjuntura cultural na cena artística portuguesa. Claro que, em termos práticos, vai dar no mesmo mas o facto de a forma de fazer as coisas ser esta e não a outra também é igualmente importante. É evidente que se tu instauras uma nova conjuntura cultural, de certo modo desalojas a outra. Embora este desalojar seja sempre um jogo de percepções porque, evidentemente, os artistas que já trabalhavam antes e que vinham dos anos 50, 60, 70, continuaram a trabalhar e continuam a trabalhar hoje em dia.

Durante um determinado período gerou-se de facto uma percepção da inauguração de uma nova conjuntura cultural e para reforçar essa ideia em termos de autonomia deste movimento de abertura (autonomia mesmo em relação ao que seria uma dinâmica de combate ou de ruptura em relação às gerações anteriores) era importante sublinhar esse aspecto. É como se o novo “Arquipélago” emergisse. Tinham aparecido seis novas ilhas que estão relacionadas umas com as outras mas que mantém a sua autonomia e não existiam antes. O “Arquipélago” não é contra nada, era uma coisa que não existia e que depois passou a existir.

A exposição em si é muito importante. Aqueles são trabalhos peculiares, são trabalhos muito mudos. Não são trabalhos que possam ser facilmente arrumados no meio de muitos outros trabalhos parecidos. É evidente que alguns deles têm algumas marcas do tempo, mas são trabalhos muito específicos. Não se pode dizer que houvesse em Portugal mais dez pessoas ou mais cem pessoas no mundo a fazer coisas muito parecidas com aquelas. Claro que há pontos de contacto mas há marcas de especificidade, mesmo em termos formais, em cada um dos artistas que são consideráveis.

 

E já tinham ali uma espécie de génese daquilo que viria a ser depois o percurso de cada um deles.

R: Completamente.

 

 

Ana Léon

Artista

(excertos de entrevista realizada por telefone em Junho 2010)

 

A primeira pergunta tinha a ver com o tentar perceber que tipo de envolvimento é que teve com o grupo. Eu sei que foram todos colegas ...

R: Andámos todos na Escola de Belas Artes de Lisboa e dentro da Escola talvez fossemos das pessoas que se tenham mexido um bocado mais. Isto foi um início de um trabalho que eu diria individual e colectivo, ao mesmo tempo, porque nós tínhamos noção desde o princípio que cada um iria funcionar de uma maneira diferente mas que a nossa força seria, também, o facto de começarmos juntos.

 

(…)

A Ana Léon também esteve ligada à Associação de Estudantes nas Belas Artes? E à revista?

R: Estive, estive. Aliás, estivemos quase todos. São coisas antigas mas das quais ainda nos lembramos perfeitamente. Foram marcantes.

 

Segundo a informação que pude recolher e os depoimentos que já recolhi também, falam justamente disso, de que a actividade na Associação de Estudantes era muito potenciadora de uma hiper-actividade criativa que vos dava energia para quererem fazer muitas coisas juntos.

R. Sim completamente. Mas nem toda a gente seguiu este percurso. Foi também depois uma questão de personalidade e de afinidades mas havia esta perfeita consciência de que podíamos ter toda a liberdade individual. Tudo isto são pontos de partida, são ocasiões que geram estas situações. Depois éramos quatro, cinco pessoas no meio daquela gente toda. Tínhamos a noção de que íamos fazer qualquer coisa, de que era preciso fazer qualquer coisa, que era preciso sair dali (e que era preciso sair do país eventualmente).

 

(…)

Em relação à exposição propriamente dita, houve uma série de decisões que tiveram que ser tomadas antes. Estando a Ana Léon em Paris, como é que se processavam estes contactos e de que forma é que participou nestas decisões (por exemplo, em relação ao catálogo, à montagem)?

R: Havia correio (físico) na altura e comunicávamos por carta. Sabíamos com antecedência que espaço é que havia, quem é que ia escrever os textos. Em relação às imagens, por questões de espaço tive que colocar na minha página só uma imagem quando na realidade as minhas obras eram conjuntos de desenhos grandes a pastel.

 

(...)

O que é que no seu percurso se alterou depois da exposição? Se é que se alterou alguma coisa (em relação ao seu trabalho).

R: Em relação ao meu trabalho, ele teve sempre em evolução, mas se formos ver estes desenhos que eu apresentei, é uma coisa que depois mais tarde me fez partir para os filmes e para as animações que faço actualmente. Eu acho que em cada um já lá estava o núcleo do trabalho que, apesar de tudo, passou por suportes bastante diferentes, mas quer seja no desenho ou na pintura (nas pinturas que fiz fragmentadas mais tarde na Galeria Alda Cortez ou na primeira exposição, o primeiro filme que apresentei onde havia metamorfoses). Esse foi mesmo o momento da passagem de um material para o outro. A entrada nos super 8’s e nos filmes. Isto para lhe responder muito simplesmente à pergunta sobre a evolução do trabalho.

 

Portanto considera que esse momento também foi, de alguma forma, inaugurador para si?

R: Sim. Houve três exposições importantes na altura. A primeira foi o “Azul, Vermelho” na Galeria Diferença, depois foi outra exposição que fiz com o Pedro Calapez só de desenhos (esse catálogo é mais raro) em que enchíamos as paredes com uns desenhos gigantes.

 

(...)

No fundo também era uma convicção que vocês próprios tinham. Não seriam os melhores em relação a outros quaisquer mas seriam os melhores porque estariam a dar o vosso melhor.

R. Sim. Porque estávamos a mexer, a agitar e tinha que se continuar a fazer qualquer coisa. Era resultado de uma indignação do tipo: “Como é possível que não se faça nada?”. “Como é possível que não haja galerias a abrir e que não haja instituições?”. A noção que nós tínhamos era que em Espanha as coisas se passaram muito mais depressa. Eu não estava presente mas sei que veio à inauguração a Juana de Aizpuru e algumas outras pessoas e que foi aí que eles começaram a interessar-se pelo nosso trabalho e foram eles que nos puxaram. E essas coisas todas foram muito importantes nas carreiras de todos nós. Tivemos a noção de que a Espanha também ajudou imenso, que os galeristas espanhóis (que já estavam mais acordados e já tinham mais experiência) também ajudaram muito.

 

 

José Pedro Croft

Artista

(excertos de entrevista realizada em Junho 2010)

 

(...)

Tinham nessa altura já afinidades? Amizades?

R: Foi por aí que tudo começou. Nós conhecemo-nos, tivemos alguma ligação à Associação de Estudantes (às primeiras formações das Associações de Estudantes) e isso passa-se tudo em 1976 / 1977. A partir daí começámos a formar um grupo e vamos acompanhando o trabalho uns dos outros. Estávamos sempre em casa uns dos outros, mais ou menos sempre em contacto e tornou-se uma amizade muito forte, embora cada um de nós com personalidades muito individualizadas.

 

E a partir daí o que é que vos levou a formar este grupo, ou melhor a formalizar a vossa partilha de actividades através de uma grupo?

R. Um grupo como tal nunca existiu, nem havia uma ideia de fazermos um grupo e darmos-lhe um nome. Este nome (“Arquipélago”) é o nome de uma exposição.

 

(...)

Quando olhamos para a História da Arte e para aquilo que são os grupos artísticos (sobretudo os que povoam a primeira metade do século XX), vemos que há uma partilha de um programa estético e de um discurso, muitas vezes há até manifestos mas, de facto, nestes grupos dos anos 80 – no vosso ou noutros vossos contemporâneos – não há isso. Não há um programa estético pré-definido, não há nenhum tipo de intenção assumidamente revolucionária ou panfletária, nesse sentido, aliás pelo contrario até há uma decisão em deixar de lado essas questões e deixar que o trabalho acabe por se manifestar por si. Faziam questão que fosse assim ou não sentiam essa necessidade?

R: Não. Não fazíamos questão. A coisa era toda muito mais displicente e menos organizada do ponto de vista conceptual. Talvez possa ajudá-la a situar-se da seguinte maneira: Nós somos a primeira geração pós-25 de Abril, ou seja, todos nós entrámos para as Belas Artes em 1975 / 1976 / 1977 e estamos portanto numa situação em que a nossa formação já se faz durante esse período. Período em que houve grandes alterações na Escola e na sociedade portuguesa. Quando estamos nesse período não há nenhuma instituição ligada à Arte Contemporânea e que, de alguma maneira, pudesse dar um enquadramento ou um suporte. Não há Fundação Luso-Americana, não há Centro de Arte Moderna, não há Fundação de Serralves, não há Centro Cultural de Belém, não há Fundação Vieira da Silva, não há Fundação EDP, etc, etc. Portanto nós vamos buscando referências e buscando pessoas que podem connosco ir ajudando a descobrir. Há uma união que é feita porque temos interesses comuns. E há uma partilha de interesses.

 

E esses interesses tinham a ver com?

R: Tinham a ver com uma opção muito individual de cada um de estar no mundo criativo ligado a uma coisa que se chama Pintura, Escultura, expressão que tinha a ver com coisas de representação do mundo ou de criação do mundo num sítio em que não há contexto. Nós não nos identificávamos com a crítica de Arte instituída, e que era também o que dava aval há produção artística, porque já ligávamos isso a outra geração (mesmo que houvesse só uma diferença de cinco ou seis anos isso já correspondia a outra geração). É, portanto, deste meio meio órfão, vivido com uma enorme alegria que surgem naturalmente encontros, mais do que a formação de um corpo a que se possa chamar grupo.

 

(...)

O Alexandre Melo e o João Pinharanda estavam a fazer uma espécie de cartografia da actividade mundana na noite de Lisboa.

R: Exactamente. Frágil, Cais do Sodré, Trumps e mais meia dúzia de discotecas ... e quem é que frequentava estes locais? Eu, o Pedro Calapez, o Pedro Cabrita, a Ana Léon, a Rosa Carvalho, o Rui Sanches mas também o Pedro Casqueiro, a Madalena Coelho, a Ana Vidigal. Uma série de gente. Também não havia aí uma intenção de trazer isto para o campo da produção artística, e analisar ideologicamente o que é que estávamos a fazer, ou qual era o sentido ou qual era a matriz. Era também aí uma coisa mais displicente.

 

(...)

R: “Nós somos os melhores” era uma convicção que não passava por rivalidade.

 

Não eram portanto os melhores em relação a ...

R: Sim, exacto. Não era por oposição a. Era uma convicção de que aquilo que nós fazemos é o melhor porque é o melhor que temos para dar, e é o melhor que temos para viver, e portanto não há melhor que isto. Eram termos absolutos, não eram relativos. Não era uma coisa pequenina e pacóvia que é muito comum (e que hoje em dia há imenso) que é: Nós somos melhores do que os anteriores. Até porque havia figuras tutelares noutras gerações, e isto é muito engraçado, porque nós não queríamos nada usá-los como modelos mas eles eram tutelares.

 

(...)

E concretamente agora em relação à exposição “Arquipélago”, que factores é que presidiram à decisão de fazerem esta exposição na SNBA, incluindo já o Rui Sanches?

R: O Rui Sanches na altura estava a estudar em Yale e nós conhecemo-lo nessa altura e, no fundo, era a necessidade de termos pontos de contacto e de estarmos a trabalhar de uma forma muito isolada e portanto podermos com ele enriquecer o nosso trabalho. E dávamo-nos realmente todos muito bem. Estávamos muitas vezes em casa uns dos outros e íamos vendo o que é que cada um fazia. Frequentávamo-nos bastante, não só indo jantar fora ou ir a casa uns dos outros, mas também de ir acompanhando o trabalho uns dos outros e fazendo com que cada descoberta fosse também uma coisa de partilha.

Já não me lembro como é que surgiu a possibilidade de expormos na SNBA. Também não combinámos muito o que é que cada um ia fazer. Cada um apareceu com aquilo que lhe apeteceu. A opção foi expor na sala da SNBA sem nenhuma divisória, embora os trabalhos estivessem dispostos ocupando zonas definidas – eu tinha uma zona, o Rui Sanches também, a Rosa Carvalho também tinha uma série de trabalhos de óleo sobre tela (que era um trabalho que ela estava a desenvolver recentemente) e que ocupavam uma determinada zona, o Pedro Cabrita outra, a Ana Léon e o Pedro Calapez outra. Acontecia que quando se entrava tinha-se a percepção da sala toda, não havia nenhuma divisória.

 

(...)

Isso poderia vir a ser uma consequência mas vocês não tinham à partida essa premissa. Ou seja, não tinham a percepção de que aquilo poderia ser um momento decisivo?

R: Sabíamos com certeza que era um momento decisivo. Sabíamos que a sala da SNBA era um espaço importante e luxuoso. Continua a ser, ainda hoje em dia. Acho que foi a primeira vez que o vi completamente vazio e, de facto, era imponente. Era um espaço fantástico que podíamos usar com toda a liberdade. E, nesse sentido, cada um de nós fez o melhor, porque também sabíamos que estávamos a ter apoio do outro lado. E tivemos muitos meses para preparar a exposição.

 

(...)

Sabendo isso tudo e tendo a vossa prática diária no decorrer do vosso trabalho, viram, em 1985 com a exposição na SNBA (exactamente no mesmo espaço onde tinha decorrido o “Depois do Modernismo”), uma oportunidade para, não direi, constituir um statement mas um momento de oportunidade de afirmação em relação ao que tinha sido o “Depois do Modernismo”?

R: Não. Não. Até porque estamos a falar de uma coisa que aconteceu passado dois anos. Dois anos são uma década. Para quem tem vinte anos é uma década. E era uma coisa mais séria que tem a ver com aquilo de que eu lhe falava à bocado sobre dizermos que somos os melhores. Ser o melhor não é por referência a outra coisa que se considera menor.

Como é que tudo aquilo que eu lhe estou a dizer depois se enquadra no meu trabalho? Aquilo que eu fiz foram uma série de cinco colunas que na realidade é uma peça única, que eram modeladas e trabalhadas (portanto tinham a coisa toda da escultura) e cada uma das figuras tinha uma figura inscrita e modelada que ia diminuindo de escala da primeira para a última. Reforçava a ideia de perspectiva trabalhando cada uma delas com marcações de espaço em que uma coluna só por si ou uma figura só por si não tinha leitura. A primeira tinha que ser lida em relação com a segunda, depois com a terceira, com a quarta e com a quinta. Havia, portanto, a ideia de um percurso, de relações de espaço, de múltiplas relações que estão a acontecer não só em cada um dos trabalhos modelados mas nos cruzamentos entre as modelações. Era, portanto, problematizar através do meu trabalho, aquilo que eu via e sentia nas outras coisas todas.

 

(...)

Esta decisão de partir para a montagem da exposição sem paredes permitindo o diálogo entre as várias obras dos vários artistas, permitindo a circulação do espectador no espaço sem condicionar um percurso pré-determinado era uma coisa que vocês tinham obviamente como pré-determinada?

R: Era como se fosse uma questão de bom senso. Não tinha grandes complicações. Grande parte destas decisões que foram sendo tomadas não são muito conceptualizadas. É mais uma questão de se ter uma sensibilidade e usá-la como se fosse um programa automático. Senão, era uma grande dor de cabeça e acabava por ser um boicote a um projecto destes. Se as coisas forem muito rígidas, muito pensadas e muito conceptualizadas e se se for pensar qual é o lugar na história e como é que vai ser daqui a dez anos e daqui a vinte ou a trinta anos é uma grande perca de tempo.

 

(...)

É curioso porque a década de 80 acaba por ser, no nosso passado recente, a década em que mais exposições colectivas de grupo acontecem.

R: Coincidente com um individualismo que não tem a ver com ego mas tem a ver com self. Nós podemos estar em grupo sem perdermos a identidade. Onde é que a Madalena Coelho ou a Ana Vidigal se confundem com o Pedro Casqueiro? Não se confundem. Cada um tem uma individualidade extremamente forte e poderosa e podem perfeitamente conviver uns com os outros porque são todos fortes e poderosos. A alguém frágil é que lhe falta espaço (e tem que derrubar o outro porque o outro lhe faz sombra). É verdade que vivíamos uma enorme sofreguidão de individualismo, mas tínhamos ao mesmo tempo uma enorme capacidade de partilha e de generosidade. Não há nenhuma contradição nisto, desde que não esteja a funcionar o ego mas o self.

 

(...)

O título da exposição é também muito exemplificativo daquilo que vos unia. Pode falar um bocadinho sobre isso? Como é que chegaram a este título?

R: Era justamente esse conceito de um enorme individualismo, mas um individualismo com pertença.

 

Havia um chão comum, uma ligação ...

R: Era. Havia um território comum que era um mar que nos ligava uns aos outros e que era o mesmo mar que nos ligava ao mundo inteiro.

 

(...)

A exposição foi, por isso, então uma oportunidade para testar uma série de coisas que deram lugar a outras.

R: Sim. E isso é a vida. Todas as oportunidades abrem portas para outras coisas. Não foi esta exposição especificamente, foram todas. Por isso é que lido mal com a História porque a História tende a arrumar as coisas e a dar-lhes um sentido quando esse sentido é completamente ao lado. Eu acho que qualquer um de nós tinha um sentido de vida que depois veio a ser confirmado e que é o sítio em que cada um de nós está. Aquela foi assim como uma sala de aeroporto onde nós convivemos e depois cada um foi apanhando o avião para o seu destino, para a sua casa. Num determinado momento a casa foi aquela, uma casa comum durante um certo tempo.

 

Muito interessante essa metáfora. Assenta bem na imagem do colectivo.

R: Claro. Estamos todos na mesma sala do aeroporto mas cada um sabe que o outro vai para Istambul e o outro para Nova Iorque. Cada um tem essa consciência da individualidade, no sentido de poder escolher um qualquer caminho naquele momento.  

 

 

Pedro Calapez

Artista

(excertos de entrevista realizada em Junho 2010)

 

 

(...)

Começaram a fazer as primeiras exposições juntos em 1982?

R: Sim, no CAPC. Há duas exposições: uma primeira em que está a Ana, o Zé Pedro, eu e o Cabrita e uma segundo em que penso que está já também a Rosa Carvalho. 

(...)

Acreditávamos no trabalho uns dos outros e, a certa altura, gerou-se a possibilidade de expôr no CAPC. Eu conhecia a Túlia Saldanha através do Ernesto, ela tinha feito uma exposição na Diferença, o CAPC estava a ganhar um certo elan em termos de convites e a certa altura propôs-se uma exposição e nós decidimos fazer então uma exposição de grupo.

E o que é que recorda dessa primeira exposição de 1982 lá no CAPC?

R: Foi uma exposição muito curiosa, há uma relação de construção de uns relativamente aos outros. Não sei se fomos ver o espaço primeiro, acho que sim, e depois imaginámos, cada um por si, os trabalhos que íamos fazer. Acho que o Cabrita até fez uma série de coisas directamente lá. Ele tinha uns plásticos amarelos desenhados a marcador preto e que se relacionaram directamente com algumas peças do Zé Pedro. Eu tinha uns desenhos muito grandes que se ligavam a alguns volumes da Ana mas também às peças do Zé Pedro – são uns desenhos a grafite porque eu nesses anos tenho muito trabalho a grafite. Até me lembro que esses meus desenhos na exposição no CAPC foram redimensionados, porque a montagem foi uma montagem colectiva (aliás como foi a seguir e como foi também o “Arquipélago”), em que todos estávamos e começámos a ver onde é que poderiam ir os trabalhos. Portanto nessa série de seis desenhos há dois mais estreitos que têm a ver precisamente com as dimensões do corredor onde foram colocados. A montagem foi feita, portanto, numa inter-relação e em todas as salas havia peças de todos os artistas. Todos os trabalhos estavam misturados.  

 

E em relação à exposição na Galeria Metrópole, em 1983?

R: Também as coisas estavam muito misturadas. Há aquele catálogo cinzento, todo em serigrafia, que tem uma serigrafia em que cada um de nós desenhou o retrato do outro e em que fizemos uma serigrafia cada um. Foi o António Inverno que imprimiu. Eu não me lembro se havia um tema, mas as coisas ganharam muito um tema bélico porque as peças do Zé Pedro eram uns radares, as minhas eram uns canhões (eu também andava a fazer umas coisas na altura que tinham a ver com pistolas). Mas não me lembro o que eram os outros trabalhos, porque o catálogo não tinha a ver com a exposição, era mais um objecto paralelo. As peças do Zé Pedro eram uma espécie de discos com uns espigões. As minhas coisas eram uns canhões, uns tanques e já não eram grafite, já eram pastel sobre madeira.

Portanto, houve esse evento de fazer o catálogo e a exposição paralelamente em que as pessoas desenvolveram o trabalho que entenderam e que depois foi montado também colectivamente.

 

(...)

A propósito disso que diz, eu li uma entrevista ...

R: É o “Nós somos os melhores”, não? Já não me lembro quem é que largou a frase mas eu acho que tinha a ver com isto mesmo, pelo menos em mim nunca estaria a ideia (até pela minha maneira de ser e de estar) de afirmar que eu sería melhor que todos os outros. Havia sobretudo uma consciência afirmativa de que “nós fazemos este trabalho e acreditamos nele e somos realmente bons nele”. E, de facto, as pessoas que nós mais admirávamos e que estavam a fazer trabalho na mesma geração que nós, eram estas pessoas, éramos nós. Haveria outros, há uma nova geração que está a aparecer nessa altura e que também nos interessava muito, como o Pedro Casqueiro e a Ana Vidigal, mas relativamente à nossa geração havia um grande acreditar no trabalho uns dos outros. Não havia programa nenhum e aliás não há nenhum desenlace. Esta exposição fez-se como outras e a seguir as pessoas foram afirmando os seus percursos individualmente. Foi tão importante para mim como o período em que trabalhei a dois com a Ana Léon. Foi fundamental ter feito aquilo porque nos deu outra consciência sobre o trabalho, e o “Arquipélago” foi igualmente importante. Portanto é tudo uma questão de prática. E sobretudo na Pintura havia, à época, muito a sensação, à parte de alguns pintores, de um mastigar de coisas que vinham dos anos 70 e que não nos serviam de paternidade. No momento em que eu comecei a pintar e antes até de ir para a Escola de Belas Artes, o Noronha da Costa era uma grande referencia para mim, e portanto é na minha opinião uma dessas excepções. Tenho até uma série de quadros dessa altura que têm a ver não só com os ambientes românticos que ele criava mas também com a própria técnica das sobreposições que ele usava. E se por um lado tinha o Noronha, por outro tinha aquela força poética do Álvaro Lapa.

 

(...)

Em relação aos textos que estão no catálogo da exposição “Arquipélago”, como é que chegaram àqueles nomes? Que tipo de abordagem é que procuravam?

R: O Fernando Azevedo apareceu porque fazia parte da SNBA. O Bernardo aparece porque estava ligado à Árvore e nós dávamo-nos bastante com ele. A exposição era para ir lá, depois não se conseguiu já não me lembro porquê. A Maria Filomena Molder apareceu porque nos dávamos com os Molder(s) já na altura e era um nome que não era habitual.

 

Em relação à suas peças, na informação que recolhi dos outros artistas foi-me dito que as obras foram todas concebidas propositadamente para o contexto da exposição. Em relação especificamente às suas, elas faziam parte de alguma série em que já estivesse a trabalhar ou foi uma coisa que surgiu de novo?

R: Os meus anos 80 são muito variados, o que eu sempre considerei muito natural porque eu sempre precisei de fazer muitas coisas. E na altura muito mais, estava a experimentar muitas coisas diferentes. Essa prática a grafite, de que falei à pouco, transformou-se numa prática a pastel e eu fiz vários trabalhos a pastel de óleo. Estes do “Arquipélago” têm depois um desenvolvimento na exposição que fiz na Quadrum em 1986. São quatro pinturas diferentes (trípticos), todos com citações arquitectónicas. Acho que são coisas mesmo novas, acho que eu não tinha feito nada assim antes. Aqui há como que um abrir para esse trabalho sobre a Arquitectura e são coisas com geometrias marcadas. Depois disso faço mais um que exponho na Diferença e depois mais uma série de outros que exponho na Quadrum em 1986. E depois mantenho essas estruturas arquitectónicas, vou pintar sobre tela e dá-se a minha exposição de 1987 na Galeria Valentim de Carvalho. Há portanto uma passagem por muitas técnicas diferentes, embora os ambientes de representação de espaços se mantenham. Fiz uma grande série sobre a ideia de apropriação a partir do Giotto e do Fra Angelico e acabo por fazer muitos desenhos que têm a ver com o ciclo de San Marco do Fra Angelico. Esses desenhos são todos a pastel mas representam muitas estruturas arquitectónicas e muita marcação de espaços com linhas e isso é exactamente o que se transporta para esses quadros do “Arquipélago”.

Havia esta vontade de sugar as fontes, qualquer coisa que se via ou a que se tinha acesso. Via-se um livro e apetecia logo pintar a partir dali. Lembro-me que o Zé Pedro (talvez uns dois anos antes) andava à volta de referências egípcias (os hieróglifos), tem aliás uns trabalhos de incisão que têm a ver com isso, e ao mesmo tempo das referências ao Giacometti. E eu andava um pouco interessado nos pré-renascentistas mas também em estruturas clássicas de Arquitectura. Tudo o que nos aparecia era utilizável.

 

Havia essa grande avidez.

R: Perfeitamente.

 

(...)

Mas havia portanto, na montagem, uma preocupação de poder estabelecer pontos de diálogo entre os trabalhos, sem pré-definir um percurso ao espectador.

R: Sim, mas nesse sentido era muito diferente da exposição no CAPC. Enquanto que aí havia uma construção quase de peça para peça e o encontrar de relações, aqui há uma certa autonomia de espaços. O Cabrita tem aquela parede do lado esquerdo. Depois eu estou na outra parede do lado de lá. A Ana Léon está ao fundo a fazer a parede do fundo. Há um espaço grande entre as minhas pinturas e as pinturas da Rosa. As peças do Rui e as do Zé Pedro tinham também os seus espaços. Havia como que uma autonomia, apesar de haver uma coexistência no espaço. No fundo havia uma individualização mostrando já que cada um estava a fazer o seu percurso. Havia como que um statement de cada um: “Eu faço isto, tu fazes aquilo e estamos aqui todos juntos”.  

 

(...)

Que ecos registou da reacção do público à exposição?

R: Nós conseguimos uma enorme movimentação de massas porque a coisa foi passando de voz em voz e juntou-se uma multidão. Isso, na minha opinião, foi uma coisa sem precedentes. Provavelmente também tinha a ver com a frequência que fazíamos de certos espaços de convívio nocturno – o Frágil – com a ligação que tínhamos às pessoas da Moda, ao Manuel Reis, à Ana Salazar, e à gente nova ligada à Moda que apareceu na altura – a Inês Simões, o Victor Neto. Eram tudo pessoas que estavam num híbrido e que já faziam parte dessa teia de relações. Embora nós estivéssemos estanques, porque o nosso trabalho era um trabalho virado para a Arte, para a produção de objectos artísticos dentro de uma investigação pessoal, estávamos também muito em contacto com outras áreas. Aquela festa que o Alexandre Melo organizou no Trumps e todo esse tipo de mistura com o mundo da noite. Eu tinha estado ligado ao mundo dos travestis através do André Gomes. Portanto estávamos todos a misturar áreas da criação.

Resumindo, estava cheio o salão. Nem nunca tivemos outra coisa igual.

 

E que trabalho de promoção fizeram?

R: Foi através da Rosarinho Sousa Machado e do Zé Sousa Machado (que aparece através do Zé Pedro penso eu) e que acabam por ajudar-nos nesse lado da promoção mediática do acontecimento.

 

(...)

E acabaram por conquistar um espaço sem fazer disso um panfleto. E acabaram por construir naturalmente um certo território marcado por um cosmopolitismo que não correspondia propriamente à imagem do país. Também era para isso que trabalhavam?

R: Quer dizer, nós trabalhávamos ... e não havia propriamente objectivos para atingir. O objectivo era trabalhar e ser bom.

 

 

 Rosa Carvalho

Artista

(depoimento recolhido por email em Junho 2010)

 

Concretamente em relação à formação do grupo “Arquipélago”, que factores presidiram à tomada de decisão de criação (formal) do grupo? Para além das afinidades próprias resultantes das relações de amizade e companheirismo, haveria também, na sua génese, motivações de carácter programático, estético, ideológico?

R: O grupo que expôs em “Arquipélago” surgiu naturalmente, dadas as afinidades intelectuais, vivenciais e artísticas existentes entre as diversas pessoas que o formaram. Esta foi, na realidade, a última manifestação conjunta do grupo, surgindo na sequencia de outras exposições realizadas anteriormente – no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra e na Galeria Metrópole, em Lisboa.

 

Que tipo de alterações pretendiam criar, no contexto socio-cultural nacional (à época)? Considera que estariam a tentar ajudar a criar uma conjuntura que correspondesse, cada vez mais, àquela na qual gostariam de viver? Ou seja, que estariam (de dentro para fora) a construir um universo sócio-cultural que vos permitisse ser artistas (existirem enquanto tal) de acordo com um contexto verdadeiramente contemporâneo?

R: Não existia um programa estrito em termos estéticos ou ideológicos, mas antes uma vontade comum de afirmação perante o panorama artístico nacional da época, pouco estimulante.

 

Especificamente sobre a exposição “Arquipélago” (SNBA, Lisboa, 1985): a visão distanciada que nos permite o tempo, leva-nos a ler a montagem da exposição e o display de apresentação das obras no espaço como uma inteligente estratégia de articulação entre os 6 universos criativos distintos e individuais. Houve, de facto, esta preocupação de criação de pontes de dialogo entre as obras dos 6 artistas, por forma a privilegiar a leitura da exposição como um todo coeso, embora viabilizando sempre a individualidade própria de cada percurso em particular?

R: Desde o início, assumimos plenamente a singularidade do trabalho de cada um – o que se reflecte, aliás, no título que demos à exposição. Em relação à montagem, não foi necessário elaborar conscientemente estratégias expositivas no sentido de criar “pontes de dialogo” entre os vários artistas, porque esse dialogo já existia à partida e não podia, portanto, deixar de se manifestar.

 

Particularmente, em relação às suas obras apresentadas na exposição, resultaram de algum trabalho continuado que estivesse por aquela altura a desenvolver? Foram concebidas especificamente para o contexto da exposição? O que motivou a sua concepção/ criação? Como sabe, o catálogo da exposição não documenta factualmente nem reproduz imagens da exposição, pelo que lhe pedia que me enviasse informação (o mais completa possível) sobre todas as suas obras em exposição.

R: Em relação ao trabalho que apresentei em “Arquipélago”, ele surgiu na sequencia de uma exposição realizada nesse mesmo ano na Galeria Diferença, tratando-se também de pinturas em que a apresentação fragmentária da figura humana se conjugava com a sugestão paisagística (enquanto que o meu trabalho anterior era essencialmente abstracto).

 

 

Rui Sanches

Artista

(excertos de entrevista realizada em Maio 2010)

 

(...)

Sobre a exposição não há assim muita documentação, a não ser um vasto conjunto de artigos que saíram em jornais à época, feitos pelo Alexandre Melo e pelo João Pinharanda que acompanharam muito de perto o grupo. Li uma entrevista que eles fizeram a dois grupos de artistas – por um lado vocês e por outro o Pedro Casqueiro, a Ana Vidigal, a Madalena Coelho – em que se afirmavam com uma enorme auto-determinação e segurança em relação ao seu trabalho, dizendo mesmo “Nós somos os melhores”. O Rui nessa altura tinha também essa perspectiva sobre si e sobre o seu trabalho?

R: Não, acho que não tinha.

 

Não tinha ou não a manifestava?

R: Não tinha. Acho que nunca tive assim essa visão empolgada de mim próprio. Acho que também tinha a ver com uma atitude mediática, de aparecer com esse carácter provocatório.

 

(...)

A propósito do catálogo da exposição “Arquipélago”, o catálogo não é propriamente um objecto que documente a exposição.

R: Não. Eu acho que isso teve a ver com os ritmos de trabalho de cada um. Como se vê na fotografia as peças do Pedro Cabrita estão fotografadas muito em progresso, as do Zé Pedro Croft estavam mais avançadas mas penso que ainda também em progresso. E a ideia era que o catálogo estivesse pronto na inauguração (isso fazia também parte da estratégia de imagem da exposição) Lembro-me que uma coisa de que falávamos muito era de uma ideia de profissionalismo, de fazermos as coisas bem feitas e não ser assim uma coisa mais ou menos e meio amadorística.

 

(...)

Em relação às imagens da exposição (eu só vi agora um conjunto de imagens que foram, à época, publicadas na imprensa e mesmo essas não são muito reveladoras). No entanto, nessas imagens fica-se com a sensação de que houve ali uma estratégia deliberada de tentar criar, o mais possível, pontos de diálogo entre as obras (até porque foram excluídas na montagem, aquelas divisórias que normalmente eram usadas para as exposições na SNBA). Portanto havia essa preocupação?

R: A preocupação era fazer uma coisa completamente diferente. A ideia era não ser uma exposição salão mas fazer uma coisa com o espaço todo aberto, em que se percebe-se a grandiosidade daquele espaço. E depois colocar lá as nossas peças em diálogo umas com as outras e em relação com a própria escala do espaço. As peças foram todas feitas para a exposição, pensadas, sabendo-se que iriam ser mostradas ali. E depois a relação entre elas foi muito uma coisa intuitiva, discutida entre nós. Foi uma coisa sem grande programa, não foi muito pensado nesse sentido, foi mais intuitiva.

 

E, ao produzirem as peças especificamente para o contexto da exposição, não estariam vocês a responder a nenhum programa?

R: Não. Nada. Nós nem sabíamos exactamente o que é que os outros estavam a fazer. Visitámos os ateliers uns dos outros, chegámos a ir a Sintra onde o Zé Pedro Croft estava a fazer aquelas esculturas e já estava bastante avançado, já não me lembro se chegaram a ir ao meu atelier ou se lhes mostrei fotografias das peças, as coisas da Ana Léon só vieram de Paris pouco tempo antes da exposição e portanto nós não sabíamos exactamente o que eram. Íamos falando ao telefone, eu não conhecia a Ana Léon, era o Zé Pedro e o Pedro Calapez que estavam mais próximos dela e que mandavam os recados da Ana Léon.

 

(...)

Em relação ainda à montagem e às suas peças em particular, elas foram concebidas e produzidas especificamente para a exposição mas vinham já numa continuidade de coisas em que estivesse a trabalhar ou aquele momento também foi para si um momento de abertura para outros caminhos?

R: Foi um bocadinho as duas coisas, quer dizer, permitiu-me fazer coisas maiores do que eu tinha feito antes. Em Lisboa, tinha feito só uma primeira exposição de escultura na Diferença, e o espaço da Diferença era um espaço pequenino – duas salas com uma escala domestica e as peças para o “Arquipélago” vieram na continuidade desse trabalho. A exposição na Diferença foi em 1984 e eu continuei a produzir coisas dentro da mesma linguagem, com algumas pequenas alterações e com a introdução de materiais que não tinha ainda utilizado (o gesso, por exemplo) mas basicamente a coisa fluiu naturalmente de um espaço para o outro mas desta vez com outra escala.

 

Considera que havia eventuais pontos de contacto entre alguns dos trabalhos dos vários artistas?

R: Sim, eu acho que sim. Acho que não é difícil estabelecer contacto entre as coisas do Pedro Calapez e as minhas coisas, entre as coisas do Zé Pedro Croft e as minhas coisas, embora já seja mais difícil com a Rosa Carvalho ou com a Ana Léon. Mas mesmo as coisas do Pedro Cabrita Reis podiam ter cruzamento com as do Pedro Calapez e eventualmente com as do Zé Pedro Croft. Comigo talvez não tanto. Mas acho que, de facto, há uma série de pontos em que nos tocamos de maneira diferente e acho que não são coisas completamente díspares. Acho que se percebe que há ali uma familiaridade qualquer.

 

(...)

Em relação ao nome, à pouco quando falava da montagem e da estratégia de imagem da exposição que se pretendia concentrada com um pequeno grupo de artistas ... o próprio título da exposição (que acaba por dar nome ao grupo) revela também isso mesmo, não é?

R: Sim. Foi muito discutido. Falámos horas e horas até chegar a um nome. E chegámos ao “Arquipélago” que eu considero um óptimo título porque é uma imagem forte e muito reveladora dessa estratégia de pessoas individuais que partilham uma proximidade que é apenas conjuntural. Naquele momento havia uma espécie de reunião de forças de atracção que trouxeram aquelas partículas para ali mas que depois naturalmente cada uma seguiria o seu percurso. Aliás, nunca se chegou a falar numa segunda exposição. Nunca houve a ideia de continuarmos a expor todos outra vez em grupo, ou de fazer um “Arquipélago 2”. Havia a hipótese da ida da exposição ao Porto mas nunca se concretizou. A ideia era um bocadinho ocupar os dois espaços institucionais de referência em Lisboa e no Porto, que tinham uma imagem um bocado desgastada, associados a pessoas de gerações anteriores, com uma programação conservadora. A ideia era fazer nesses dois espaços uma coisa um bocado diferente.

 

(...)

Que tipo de ecos é que foram surgindo na imprensa, para além da cobertura feita pelo Alexandre Melo e pelo João Pinharanda que acompanhavam muito de perto e que portanto também ajudaram a promover esta dinâmica e a promover a própria exposição?

R: Grande parte da cobertura foi feita por eles e não me lembro de mais nada assim particularmente notável. Lembro-me que a inauguração teve muita gente, teve muito sucesso e que depois a exposição foi sendo visitada amiúde. Lembro-me que tínhamos um patrocínio de uma firma de Vinho do Porto, lembro-me que serviram Vinho do Porto na inauguração e que depois todos os dias havia, às cinco da tarde, um Porto que era servido a quem fosse lá visitar a exposição. Nós às vezes encontrávamo-nos lá para beber um Vinho do Porto e ver como é que estavam a correr as coisas com a exposição e havia sempre uma pessoa ou outra. E lembro-me que algumas pessoas combinaram visitas acompanhadas, por exemplo o Julião Sarmento, que levou lá o Juan Muñoz e a Margarida Veiga e mais algumas pessoas da SEC, ou seja, uma série de pessoas que eu na altura não conhecia e que quiseram falar connosco. Houve, de facto, uma atenção de pessoas de outras gerações e de pessoas ligadas às instituições.

Para além disso, a partir daí houve contactos com galerias, o José Pedro Croft começou a trabalhar com a Valentim de Carvalho, eu não logo, mas algum tempo depois também comecei a trabalhar com a Valentim de Carvalho. Não me lembro se o Cabrita já trabalhava com os Cómicos ou se foi a partir dessa altura também. Portanto, houve assim uma certa movimentação à volta da exposição e que surgiu por causa da visibilidade que teve a exposição.