30.6.08


Dulce d'Agro. Fotografia por Mário Cabrita Gil


DULCE D’AGRO:

«Muito provavelmente, a mais bonita história cultural
de depois do 25 de Abril»1


Corriam os primeiros anos da década de 1970 quando Dulce d’Agro (Paris, 1917) tomou o seu lugar em mais uma sessão da leiloeira Dinastia, em Lisboa. Mais que curiosidade ou simples cumprimento protocolar de um velho hábito social, a sua presença naquela sessão tinha um objectivo preciso. De entre os lotes a licitar naquela tarde encontrava-se uma pintura de Joaquim Rodrigo cuja aquisição era para si, muito mais que um capricho, uma prioridade. Enquanto faziam subir a pintura ao palco ter-se-á agitado a sala, e ter-se-á agitado também Dulce d’Agro, antecipando a concorrência que a esperava. A sucessão vertiginosa de ofertas fazia recair a atenção dos presentes sobre a figura elegante de Dulce d’Agro, ali imbuída da vontade férrea de acrescentar aquela específica pintura à sua colecção de arte moderna portuguesa. Terá sido sob essa luz que Alberto Caetano observou pela primeira vez aquela que viria a ser uma das personalidades mais influentes na sua formação enquanto espectador, e enquanto coleccionador de arte. E foi nesse cenário que a viu arrebatar a pintura de Joaquim Rodrigo “por um preço exorbitante para a época”, e que assistiu a uma plateia que, entre o choque e a cobiça, se levantou para aplaudir o feito.

Nos primeiros anos da década de 1970, Dulce d’Agro ainda era apenas e só uma empenhada mas anónima coleccionadora. Vinte anos depois, era já a mítica fundadora da Galeria Quadrum, e tinha já contribuído decisivamente para o suporte de muito do que de mais marcante se passou no domínio das artes visuais das décadas de 1970 e 1980 no nosso país. Esta é parte da sua história - aquela que José-Augusto França descreveu como sendo “muito provavelmente, a mais bonita história cultural de depois do 25 de Abril.”1

Uma galeria de arte na Primavera Marcelista
Os últimos anos da década de 1960 foram vividos em Portugal sob a influência da centelha de esperança que ganhou o nome de “primavera marcelista”. Como recorda Rui Mário Gonçalves, o espartilhamento da sociedade portuguesa no final dos anos 60 não chegou a conhecer uma folga verdadeiramente estrutural; o panorama artístico do nosso país continuava deficitário no que respeita à existência de instituições vocacionadas para arte moderna, e marcado por um sistemático desinteresse das autoridades pela generalidade das manifestações culturais. “A actividade artística relevante passava quase toda pela Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA) e por algumas galerias que iam aproveitando, como podiam, o bom momento económico que se viveu até à crise petrolífera em 1973.” A predominância de um gosto que pendia para o naturalismo oitocentista convivia com uma crescente consciência da classe dominante sobre o alto potencial de valorização da arte moderna, facto que terá impulsionado o desenvolvimento de um mercado, ainda que débil, para este tipo de manifestação artística.

Dulce d’Agro pertencia a essa classe dominante. Contudo, não só a sua formação a aproximava da modernidade artística bem mais que do gosto oitocentista, como as suas ambições excediam em muito a apetência pelo mero investimento em bens culturais. “A Dulce d'Agro foi sobretudo uma mulher abastada e cosmopolita, artista de formação, e casada com um arquitecto dotado de uma grande curiosidade intelectual e artística. Ambos correram o mundo, do Egipto ao MoMA...” Foi certamente a partilha dessa curiosidade, aqui apontada por António Cerveira Pinto, que impulsionou a estreita relação de Dulce d’Agro com alguns intelectuais da época – de entre os quais Isabel Alves destaca, pela recorrência com que eram invocados, o Professor Delfim Santos e Suzanne Page, cuja longa carreira no Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris incluiu a posição de directora a partir de 1988 –, e que a levou a estudar pintura sob a orientação de André Lhote em Paris.

Até aos primeiros anos de 1970, a artista Dulce D’Agro manteve uma actividade regular e, entre outras exposições, o seu trabalho mereceu uma representação na 1ª Bienal do Museu de Arte Moderna de S. Paulo, e uma 3ª Medalha em Pintura pela Sociedade Nacional de Belas Artes. Porém, a nítida e anacrónica influência de uma remota Escola de Paris não terá colhido as melhores opiniões entre a comunidade artística da época. Reforçada por uma série de situações pessoais que obrigaram Dulce d’Agro a rever a sua postura perante a vida laboral, esta falta de resultados cabais na área artística terá contribuído decisivamente para o seu abandono da pintura, e para o reposicionamento do seu papel no tecido cultural português. “O que é que eu sabia fazer? Era a pintura. O que é que eu gostava? Era a pintura. E então lembrei-me de abrir uma galeria. Vendi uns terrenos muito importantes e com a minha parte daquele dinheiro investi, não só na galeria, como também no stock, tinha um stock belíssimo, ainda não estrangeiro. Mas tinha dos melhores.”2

Os “melhores” para Dulce d’Agro eram, de facto, alguns dos nomes mais sonantes da arte portuguesa da época, e foram exactamente esses que a Quadrum apresentou na sua exposição inaugural, em Novembro de 1973. Depois de uma curta experiência em 1972 num espaço virado para a Praça de Alvalade, e que Miguel Palma se lembra ainda de ter visitado, Dulce d’Agro alugou à Câmara Municipal de Lisboa aquele que nunca chegou a ser o refeitório do Centro de Artes Plásticas dos Coruchéus, e que albergou a Galeria Quadrum daí em diante. Projectada pelo Arquitecto Fernando Peres, esta ampla sala é hoje descrita por Luís Sáragga Leal como “um espaço lindíssimo, com uma luz fantástica que coava muito bem pela fachada de vidro”. Do jardim que o edifício dos Coruchéus ainda enquadra seria então possível vislumbrar, reunidas sob a égide de “D. Duarte – o Melancólico”, de Costa Pinheiro, um conjunto de obras de artistas como Nadir Afonso, Manuel Baptista, Charrua, Noronha da Costa, Alice Jorge, Fernando Lemos, Menez, Jorge Martins, Paula Rego, Joaquim Rodrigo, António Sena, João Vieira, ou Fernando Azevedo, dispostas pelo espaço segundo indicações deste último, e expostas sobre estruturas amovíveis de alumínio e feltro.

Estava lançado o projecto da Quadrum, e o sonho de Dulce d’Agro encontrava um campo empático na vontade e no entusiasmo de inúmeros artistas e críticos, dos quais se destacam Rui Mário Gonçalves, José-Augusto França e Fernando Azevedo, que energicamente se associaram a esta “galeria verdadeiramente excepcional (que) pelas suas dimensões e condições de apresentação das obras, adquire neste local uma possibilidade única de convívio com os artistas.”3


Pires Vieira, 1976-77, Galeria Quadrum


«Que esperança e que futuro – como sabê-lo? »4
As duas exposições que se seguiram na Quadrum trouxeram a Portugal obras de Vasarely e de Karel Appel, muitas delas adquiridas pela própria Dulce d’Agro, e denunciavam tanto a vontade de internacionalizar o programa da galeria quanto a intenção de responder ao que Pires Vieira descreveu como sendo o “bom gosto da burguesia culta da época”. O primeiro posicionamento de Dulce d’Agro no quadro da sua nova função de galerista era claramente subsidiário de uma postura que não descurava, de modo algum, a vertente comercial e o que esta implicava de cedências a uma procura de cariz conservador. E, de facto, a combinação dos seus conhecimentos nas áreas social e artística teria certamente dado frutos generosos, caso não se tivesse dado, entretanto, o 25 de Abril de 1974.

“Todas as galerias fecharam depois do 25 de Abril. O único que também se aguentou foi o Manuel de Brito com a Galeria 111. Mas a 111 já tinha compromissos nessa altura (com artistas e, portanto, com um programa já pré-estabelecido) e a Quadrum acabou por receber um conjunto significativo dos mais importantes artistas dessa época.” A situação aqui enunciada por João Vieira deriva, não apenas de uma conjuntura social e política que canalizou grande parte das manifestações culturais no nosso país para fora dos espaços comerciais e institucionais, mas também de uma consciência generalizada por parte dos agentes culturais quanto à delicada viabilidade económica de qualquer projecto nos tempos quentes do PREC.

Dulce d’Agro terá sentido estes efeitos de forma muito evidente quando um conjunto de circunstâncias decorrentes desta nova situação política a obrigou a interromper momentaneamente a exposição de Karel Appel. E terá pressentido também que toda a sua estratégia comercial teria que ser revista perante esta nova realidade. “(Depois do 25 de Abril) tudo se vira ao contrario (...) nem um tostão! (...) Nessa altura disse assim: deixa-me fazer o que eu gosto e não o que se vende! Já que não se vende nada, não tenho nada a perder. Então, deixa-me fazer o que eu gosto.”5

«Uma pequena fogueira cultural»6
Durante o que restou do ano de 1974, Dulce d’Agro viu-se forçada a vender algumas das obras de artistas internacionais que havia adquirido recentemente, não raras vezes a cotações abaixo do valor de mercado, para manter a galeria em funcionamento. Era a prova acabada de que a história tinha ultrapassado o programa fundador da Quadrum. No fundo, e como nota Leonel Moura, “quando a situação estabilizou, a Dulce percebeu que não podia regressar ao seu projecto inicial”; que a sobrevivência da Quadrum estava também ela dependente de uma revolução estrutural que encontrou a sua oportunidade numa “viragem para artistas mais jovens, de práticas muito heterogéneas, mas que se agrupam no que se designava, na altura, por vanguarda portuguesa”, acrescenta Pires Vieira.


Leonel Moura, Potlach (série de 19 fotografias, 1976)


Pode considerar-se esta como a aproximação menos romântica ao assunto mas, em abono da verdade, é importante dizer-se que a história da Quadrum teria sido radicalmente diferente caso a situação económica do pais não se tivesse alterado tão drasticamente, e não se tivesse reunido em torno de Dulce d’Agro um grupo verdadeiramente ímpar de artistas e agentes, cujas relações sinérgicas fizeram atear nesta galeria “uma pequena fogueira cultural”6 . O véu de liberdade e experimentalismo que hoje filtra a memória da Quadrum é devedor da explosão criativa de autores que, como nota Catarina Rosendo, ali concretizaram alguns dos momentos mais conseguidos das propostas “ligadas ao conceptualismo, à poesia experimental, aos happenings, ou ao vídeo, e que envolveram artistas como Alberto Carneiro, Ana Hatherly, Ana Vieira, António Palolo, Ernesto de Sousa, Fernando Calhau, Helena Almeida, José Conduto, José de Carvalho, Salette Tavares, etc.”.

“A Quadrum (...) foi um lugar, talvez único em Portugal, onde os artistas encontraram apoio para a realização de obras experimentais. Muitos, como foi o meu caso, aqui comunicaram a sua obra e puderam sedimentar e fortalecer o correspondente percurso de criação.” Esta declaração de Alberto Carneiro poderá sintetizar a qualidade maior de Dulce d’Agro – a capacidade para manter na sua órbita uma diversidade de colaboradores que nela encontraram a abertura e a dedicação fundamentais para construir um projecto que, nas palavras de Ulrike Rosenbach, foi “suficientemente importante para ser conhecido internacionalmente como parte integrante da jovem rede que fez despertar uma nova consciência sobre as práticas da photoart, performance e media art.”


Ulrike Rosenbach na Quadrum. Cortesia Espólio Ernesto de Sousa


Catálogo da exposição de Gina Pane na Quadrum


A portentosa energia que se gerou na Quadrum na década compreendida entre 1974 e 1984 garantiu a Dulce d’Agro um lugar na história da arte portuguesa, e o reconhecimento público que o Estado formalizou com a Comenda da Ordem de Santiago da Espada com que a condecorou em 2002. Mas a ascensão vertiginosa da Quadrum pós-25 de Abril foi tudo menos uma luta solitária. Para além da multidimensional contribuição dos artistas, Dulce d’Agro soube contar também com o suporte e com a visão de alguns agentes que alargaram os horizontes da Quadrum para lá do que seria expectável, e em mais que uma frente.

De entre estes, há a destacar os papéis que Rui Mário Gonçalves e Salette Tavares desempenharam na formação de públicos – nomeadamente com a realização dos surpreendentemente bem-sucedidos “Cursos de Iniciação à Arte Moderna” – e a tarefa que Maria da Graça Carmona e Costa cumpriu, na sua inabalável discrição, enquanto pilar pragmático da galeria. Por outro lado, “a aproximação de Ernesto de Sousa à Quadrum, sobretudo a partir de 1976”, diz Pires Vieira, terá sido um dos mais decisivos factores na abertura desta galeria à cena internacional. Atingindo a plenitude em 1978 – ano em que assegurou praticamente toda a programação da Quadrum e trouxe a Portugal, entre outros, Gina Pane, Ulrike Rosenbach e Dany Bloch – a contribuição de Ernesto de Sousa teve expressão em todos os campos de acção da galeria, e perdurou até meados da década de 1980. A sua presença, não apenas estimulou a vertente pedagógica da Quadrum – com a introdução de ciclos dedicados às artes performativas e às novas tecnologias – como reforçou e ampliou a rede de intercâmbios que ao longo destes anos se estabeleceu, sobretudo com galerias italianas e francesas. A sua participação terá sido também determinante na consolidação do pioneiro percurso da Quadrum pelos meandros das feiras de arte internacionais que, de 1977 em diante, conheceu paragens tão auspiciosas como Bolonha, Basel, Düsseldorf, Paris ou Madrid.



Montagem de exposição de Ernesto de Sousa na Quadrum. Cortesia Espólio Ernesto de Sousa


«Hoje... hoje lhe digo, não me arrependo»7
Dulce d’Agro foi abandonando progressivamente a sua actividade enquanto galerista a partir de 1990. A sua avançada idade, aliada às profundas alterações que o panorama cultural português conheceu durante a década de 1980, a uma programação errática, e à dispersão de uma parte do núcleo de artistas e colaboradores da Quadrum por outros projectos, ditou o encerramento desta galeria por volta de 1995. A Quadrum conheceu ainda algumas tentativas de reanimação, nomeadamente através da programação que António Cerveira Pinto ali levou a cabo depois de 1998, e que terá sido bloqueada por um conjunto de complicações burocráticas. Durante o ano de 2007 correu na internet uma petição a favor da revisão urgente dos destinos dos ateliers dos Coruchéus e da própria Quadrum, neste momento a braços com uma ordem de despejo por parte do município. Esta ameaça torna premente a absoluta necessidade de ver o seu espólio artístico e documental “conduzido para uma de entre as várias instituições museológicas e/ou bibliotecárias especializadas que, entre nós, possuem meios humanos e técnicos para assegurar o seu futuro”, defende Catarina Rosendo. Parece óbvio que muito se joga neste plano, mas talvez nada tão importante quanto a memoria cultural colectiva.


Dulce d'Agro e Melo e Castro na Quadrum. Cortesia Espólio Ernesto de Sousa



Dulce d'Agro e Ernesto de Sousa. Cortesia Espólio Ernesto de Sousa


“A Dulce era uma mulher esfuziante, culta, inteligente e muito aberta. Ela gostava muito do que fazia e isso via-se. Investiu tudo o que tinha naquele projecto.” Aquele projecto foi a Quadrum, e o investimento aqui invocado por Irene Buarque foi a fortuna pessoal que Dulce d’Agro empenhou, sem hesitar, na construção daquela que terá sido “uma das galerias de arte mais interessantes que Portugal conheceu até hoje”, acrescenta Leonel Moura. E hoje é inevitável que se meça parte da heróica caminhada Dulce d’Agro pela bitola da derrocada financeira. Mas o grande capital de Dulce d’Agro não foi propriamente esse. Foi a singular inteligência de saber perfilhar, a extrema generosidade de deixar fazer, e a capacidade de se entusiasmar com os feitos dos outros, de tomá-los como seus, e de contribuir com todos os seus recursos para multiplicar os seus efeitos. Será esse o seu legado, será essa a nossa herança comum.
Para apenas alguns, “para aqueles que a acompanharam inicialmente na aventura das demandas e dos projectos irrealizados, fica o grato e excitante sentido de pertença que une todos aqueles para quem o incómodo é quase uma questão ontológica”, conclui Pires Vieira.

Bruno Marchand


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1 José Augusto França, “Todos à Quadrum”, Diário de Lisboa, 19 de Abril de 1978
2 Dulce d’Agro in Melo, Alexandre, Arte e Mercado em Portugal: Inquérito às Galerias de Arte e uma Carreira Artística, Observatório das Actividades Culturais, Lisboa, 1999, p. 41
3 Rui Mário Gonçalves, “34 pintores de hoje”, Expresso - Artes, 1 de Dezembro de 1973
4 José-Augusto França in AAVV, Exposição de Artistas Modernos Portugueses, Lisboa, Quadrum, 1973
5 Dulce d’Agro in Melo, op. cit., p. 41
6 Dulce d’Agro in AAVV, 17 anos da Galeria Quadrum, Quadrum, Lisboa, 1990
7 Dulce d’Agro in Melo, op. cit., p. 41




Agradecimentos:
Isabel Alves
Irene Buarque
Alberto Caetano
Alberto Carneiro
Mário Cabrita Gil
Monteiro Gil
Rui Mário Gonçalves
Luís Sáragga Leal
Dinorá Lucas e Giefarte
Leonel Moura
Carlos Nogueira
Miguel Palma
António Cerveira Pinto
Ulrike Rosenbach
Catarina Rosendo
João Vieira
Pires Vieira


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DECLARAÇÕES, TESTEMUNHOS E ENTREVISTAS



Dulce d’Agro

Em 1973 abri a galeria Quadrum. Era o momento da arte Conceptual e Minimal. Depois de três exposições – a inaugural só com artistas modernos portugueses, e a de Vasarely, e finalmente a grande exposição de Karel Appel - , veio o 25 de Abril. Com este veio a “travessia do deserto” para a venda de arte e para as galerias em Portugal. Começou um período difícil, mas não me senti, de forma alguma vencida, em todo o tempo em que, quase solitária, prossegui a divulgação da arte moderna, antes pelo contrario, não me rendi a nada e pude, mesmo, dar largas, se assim posso dizer, ao meu desejo de actualização cultural em Portugal limitada embora ao meu reduzido poder económico.
Por amor à arte moderna abri a Quadrum e esse amor resiste a tudo e com a ajuda dos artistas que me interessavam consegui durante estes anos fazer uma coisa muito importante – fazer o que gosto.
Com a Quadrum, participei em Feiras internacionais, desde 1977, divulgando o trabalho e a criação dos artistas portugueses; orgulho-me aliás de ter aberto este caminho para a arte portuguesa. Realizei na Quadrum, com colaborações plurais, cursos de arte moderna e estética, promovi cursos de gravura, com isso procurei sensibilizar e informar sobre a arte moderna contemporânea. Fiz com esta actividade uma pequena fogueira cultural onde se aqueceram os espíritos apaixonados da arte, como eu. Hoje, muitos jovens que visitam a Quadrum fazem-me feliz quando, com algum espanto, me recordam ter assistido a estas iniciativas e continuarem ligados à arte. Alguns deles expuseram trabalhos já na Quadrum.
Nesta constante luta tive sempre a preciosa ajuda de muitos amigos mas quero aqui destacar a confiança que me concedeu o José-Augusto França e a colaboração e trabalho interessado mesmo entusiasmado do Fernando Azevedo, do Rui Mário Gonçalves e do Ernesto de Sousa.
Podem agora chamar-me “louca” mas nunca “ingénua”. O amor é também feito de loucura e foi esta “loucura-amor” à arte moderna, às potencialidades dos artistas plásticos portugueses que me levou a dirigir a Quadrum estes dezassete anos se me arrepender dos meus entusiasmos e dos desgostos que alguns me custaram.
Se a compensação foi algumas vezes o sofrimento, resta-me a grande alegria de ter realizado, ainda que só numa parte, o meu sonho.

AAVV, “17 anos da Quadrum”, Lisboa, Quadrum, 1990, p. 7



Isabel Alves
Coordenadora do projecto ernestodesousa.com
Informação Online

Eu e o Ernesto começámos a acompanhar o trabalho da Dulce na Quadrum, logo a partir das primeiras exposições. Se não me engano, logo na exposição do Vasarely. De qualquer forma, as memorias mais vivas que tenho da Dulce são de meados do anos 70 em diante, altura em que a Dulce começa a levar alguns artistas a feiras internacionais.

A Dulce era agitadíssima! O Ernesto fazia uma conferência qualquer no exterior e a Dulce aparecia. Em Munique, por exemplo. Foi uma grande divulgadora da arte portuguesa. E nesse sentido foram muito importantes os contactos que manteve com alguns agentes, principalmente em Paris. A Dulce falava muito das comissárias que organizavam a bienal de Paris... a Suzanne Page... E falava muito também do Professor Delfim Santos.
Quando o Ernesto começou a colaborar com a galeria a Dulce ficou um pouco mais aberta ao experimentalismo. O Ernesto fez na Quadrum uma série de cursos e de conferências ligadas à performance e às novas expressões que depois deram lugar a um conjunto de exposições e palestras de artistas como Gina Pane, Dany Block, Ulrike Rosenbach, e os Defraoui. Nessa altura, fez também um conjunto de exposições de jovens artistas portugueses nas quais mostrou o Leonel Moura, a Irene Buarque, o Mário Varela e o José Conduto.

Mais tarde, o Ernesto começa a desligar-se. Principalmente porque começa a fazer outros trabalhos. Envolveu-se no projecto da Diferença, depois aparecem as Bienais de Veneza, e começa a viajar ainda mais.



Irene Buarque
Artista e Co-Fundadora da Cooperativa Diferença
Informação Online

Conheci a Dulce d’Agro pouco depois de vir para Portugal. Durante esses anos de 1974 e 1975 fui bastantes vezes ver as exposições da Quadrum. Lembro-me bem das exposições da Salette Tavares, da Ana Hatherly, do João Vieira, da Ana Vieira, e foi lá que fui conhecendo toda essa gente. E lembro-me dos cursos de performance do Ernesto, que todos nós fomos assistir. O Ernesto ia muito lá fora, à Documenta, às Bienais de Veneza, e trazia muito material que depois partilhava connosco.

A Dulce era uma mulher esfuziante, culta, inteligente e muito aberta. Ela gostava muito do que fazia e isso via-se. Ela investiu tudo o que tinha naquele projecto. E a Maria da Graça, que trabalhava lá, era o braço direito da Dulce, e era ela que nos aturava. Principalmente em 1978, na altura das quatro exposições propostas pelo Ernesto: a exposição Leonel Moura, do Conduto, do Vieira e a minha. O Ernesto não só sugeria artistas portugueses como artistas estrangeiros. O Ernesto acabava por formar toda uma jovem geração de artistas, como o Palolo, o Conduto, o Carvalho...

A Dulce, entretanto, levou-nos à feira de Bolonha, que era das primeiras feiras de arte internacionais. E ia por sua conta e risco. A Bolonha e a Basel. E a imprensa não notava, a critica não aparecia muito na Quadrum... estava mais ligada à SNBA.

O Ernesto foi, de facto, um ponto de viragem para a Quadrum, logo a partir de 1975. Depois, a partir da altura que fundámos a Diferença, começa a haver alguns intercâmbios com artistas, principalmente italianos, que vinham e expunham aqui na Diferença e outros na Quadrum. Havia um grande espírito de troca. O Leonel (Moura) também trazia algumas colaborações com artistas que ele conheceu no estrangeiro, da altura em que esteve em Amesterdão.

O Ernesto depois envolve-se mais com a Diferença, começa a comissariar Veneza, a escrever cada vez mais, e, claro, continua a desenvolver o seu trabalho artístico. E por isso vai estando menos na Quadrum. Depois a Dulce depois vai abandonando e é substituída pelo filho.



Alberto Caetano
Arquitecto e Coleccionador

A primeira vez que vi a Dulce foi num leilão da Dinastia, por volta de 1971, no qual é posto à venda um quadro do Joaqum Rodrigo, e que foi vendido por um preço exorbitante para a época. Lembro-me que quando a compra se deu, levantou-se a sala a bater palmas. Quem comprou esse quadro foi a Dulce, que o manteve na sua colecção até ser “obrigada” a vendê-lo. Era um dos quadros mais bonitos do Rodrigo. Ela tinha uma óptima colecção de pintura.

Vim a conhecer a Dulce logo após a inauguração da galeria, numa altura em que lá estava uma exposição de cerca de 30 artistas portugueses. A galeria para mim foi um choque. Não havia nada igual em Lisboa. Tudo aquilo era de um rigor de desenho e de design... a forma como eram mostradas as obras, as próprias obras... eram os artistas de referencia dessa época: o Costa Pinheiro, o Fernando Calhau, a Helena Almeida, etc... Para mim tudo aquilo era novo. A São Mamede também tinha um bom espaço, mas a Quadrum, para além do espaço, tinha umas estruturas de alumínio com uns painéis metálicos forrados a feltro, muito bonitos. Esses planos criavam uma métrica e uma dinâmica dentro do espaço...

Depois do 25 de Abril todas as galerias começaram a fechar. Mas a Dulce continuou. Isso é que é de realçar. Tinha aquela paixão pela arte e pelos artistas. Foi a primeira a levar artistas a feiras internacionais. Foi a primeira a querer mostrar artistas que pouca gente tinha coragem de mostrar. Os vídeos do Palolo, as obras do José Conduto, Ernesto Sousa, Alberto Carneiro, Helena Almeida, Julião Sarmento, António Cerveira Pinto, Leonel Moura... A vanguarda daquela época estava toda lá. E estar na Quadrum era o ponto alto de uma carreira para um artista. E ela fazia por paixão à arte, não por dinheiro.

A Dulce gostava dos jovens, e recebia muito bem. Havia um espaço “privado” onde era possível ver algumas das obras que estavam em acervo. A felicidade que ela tinha no facto de um jovem como eu ter uma obra era mais forte que o proveito económico que poderia ter através da venda.

Ela foi muito ajudada pela Maria da Graça (Carmona e Costa) que era o seu grande apoio. A Maria da Graça é uma pessoa fantástica, muito low profile. Está sempre mas nunca está... Está quando é necessário. Uma pessoa com grande delicadeza. Foi ela quem manteve a Quadrum e evitou a derrocada... É a minha interpretação. A Dulce era uma pessoa muito enérgica, mas muito menos pragmática... talvez a pessoa que mais amou a arte a troco de nada.

O sonho da Dulce era trazer o (Joseph) Beuys a Lisboa. Tinha uma grande admiração pelo Beuys. Acho que não conseguiu, mas trouxe outros como a Gina Pane, cuja performance foi muito impressionante... Depois houve uma época de decadência. Os artistas começaram a deixar a Quadrum. Os últimos anos foram o silêncio total. Os artistas começaram a ir para outras galerias. E a Dulce sentiu muito essas saídas...



Alberto Carneiro
Artista
Informação Online

Em 1975 preparei a minha primeira exposição na Quadrum a convite da Dulce d’Agro. Aqui mostrei, pela primeira vez, Os sete rituais estéticos sobre um feixe de vimes na paisagem, Árvore jogo/lúdico em sete imagens espelhadas, Operação estética em Caldas de Aregos, entre outras obras. E assim começou uma amizade e cumplicidade com as coisas da arte que perdurou.

A Quadrum foi laboratório da arte experimental portuguesa nos anos setenta/oitenta, “de vanguarda”, no dizer da Dulce d’Agro. A Alternativa Zero já ali germinava. Lá actuaram e puderam manifestar as suas experiências plásticas a Salette Tavares, a Ana Hatherly, o José Ernesto de Sousa, o Palolo, eu mesmo e muitos outros. A multidisciplinaridade foi o acontecimento, a novidade. A Dulce d’Agro era uma pessoa entusiasta que promovia e defendia os artistas e as obras em que acreditava, sempre generosa e nunca colocando os negócios como determinante das suas decisões.

A Dulce d’Agro sempre se empenhou na divulgação internacional da arte e dos artistas portugueses. Participou nas feiras de arte de Basel e de Bolonha e promoveu o intercâmbio com galerias estrangeiras, como foi o meu caso com as exposições na ART’79 de Basel e nas Galerias Pellegrino de Bolonha, 1981; e UNDE? de Turim, 1981. Mostrou ainda na Quadrum obras e artistas estrangeiros com destaque para as notáveis performances de Gina Pane.

A Quadrum fidelizou públicos, quer através das exposições que sempre corresponderam aos princípios e exigência programática da Dulce d’Agro, quer pelas actividades culturais multidisciplinares, particularmente aquelas dinamizadas por Salette Tavares e José Ernesto de Sousa.

A Quadrum foi o lugar onde aconteceram actos relevantes das artes nos anos setenta/oitenta. Como referi acima, foi um lugar, talvez único em Portugal, onde os artistas encontraram apoio para a realização de obras experimentais. Muitos, como foi o meu caso, aqui comunicaram a sua obra e puderam sedimentar e fortalecer o correspondente percurso de criação.

Ao terminar a sua actividade como galerista, a Dulce d’Agro estava muito desiludida com a falta de apoios. A saída de alguns artistas, como foi o meu caso, causou-lhe grande amargura. Creio que dificuldades financeiras acentuaram mais essa decepção.

Contudo a Dulce D’Agro jamais cedeu sobre princípios que pusessem em causa a sua acção de galerista notável e procurou manter até ao fim uma programação consequente.

Como se pode depreender do meu testemunho, considero que a arte e os artistas portugueses, particularmente aqueles que com ela trabalharam, muito lhe devem. Considero ainda que é indispensável fazer-se um estudo sério e aprofundado sobre o trabalho da Dulce D’Agro na Galeria Quadrum, no contexto respectivo e nas implicações exteriores, nacionais e internacionais. Para falarmos de um legado da Dulce D’Agro, esse estudo é necessário e urgente. Entre nós, esquecemos demasiado e adiamos o reconhecimento, infelizmente quase sempre para sempre.



Rui Mário Gonçalves
Professor, Comissário, Historiador e Crítico de Arte
Informação Online

A Dulce viveu durante algum tempo em Paris. Estudou lá com o André Lhote e, se não estou enganado, com Fernand Léger... Portanto, a Dulce tinha alguma informação, e tinha ambições artísticas... A Quadrum era alugada à câmara (e nesse ponto acho que teve alguma influência o Carlos Botelho). Era um espaço que tinha sido desenhado para servir como refeitório dos ateliers dos Coruchéus mas que nunca chegou a funcionar como tal. A Galeria tinha ainda a vantagem de ter uma cave, do tamanho da própria galeria, e que servia como depósito ou armazém.

A Dulce abre a galeria cheia de entusiasmo e começou a comprar imensas obras de artistas estrangeiros: obras do grupo CoBrA, de Vasarely, que mais tarde alargou a artistas ligados a outro tipo de expressão, como a Gina Pane, por exemplo. Nessa época, a actividade artística relevante passava quase toda pela Sociedade Nacional de Belas Artes e por algumas galerias que iam aproveitando, como podiam, o bom momento económico que se viveu até à crise petrolífera em 1973. Depois, com o 25 Abril quase todas as galerias fecham. A Quadrum fica; em grande medida porque tinha aberto apenas há um ano... De certa forma, não deixa de ser um acto heróico, e também por isso, eu, como outros, decidimos dar o nosso apoio.

A Dulce falava muito com o Fernando Azevedo, com o Sommer (Ribeiro), comigo inclusive, que íamos ajudando como podíamos no âmbito da programação. Mas a Dulce também viajava muito. Ia lá fora e estava actualizada. A Dulce foi das primeiras a procurar a internacionalização dos seus artistas, e isso era muito importante para ela...

Por volta do 25 de Abril a Quadrum começa a fazer palestras ao Sábado. A ideia era animar a galeria. Orientei algumas destas palestras, que eram apoiadas pela Gulbenkian. Havia também programas para crianças, etc. Ou seja, muito movimento... E estavam sempre cheias, com cerca de 80 pessoas, facto que nos obrigou a sair do gabinete, onde aconteciam originalmente, para passarem a acontecer nas salas da galeria.



Luís Sáragga Leal
Advogado e Coleccionador
Informação Online

Conheci a Dulce na altura da inauguração da Quadrum. Era uma personagem muito curiosa e cativante... Teve alguma formação em artes plásticas e um pequeno percurso como artista. Entretanto, terá herdado uma quantia apreciável que investiu totalmente na Quadrum - facto que me merece toda a admiração pelo quanto que denota de paixão pela arte.

A Quadrum tinha um espaço lindíssimo, com uma luz fantástica que coava muito bem pela fachada de vidro. Passei lá muitas tardes a ver exposições e também o acervo, o qual era possível visitar.

Lembro-me bem dos primeiros anos. Lembro-me de a Quadrum se assumir como um projecto internacional e da coragem de trazer obras de artistas estrangeiros, por exemplo, do movimento CoBrA. Foi aí que me familiarizei com alguns dos grandes artistas portugueses da década de 60 e de 70, e foi aí que comprei os meus primeiros quadros... As obras da Paula Rego, do grupo KWY... Foi lá que comprei um magnífico António Sena e os meus primeiros quadros do Nikias Skapinakis e do João Vieira. Lembro-me também das primeiras performances, que eram algo de inaudito no nosso país. No fundo, a Quadrum era também um pólo de dinamização das novas manifestações das artes plásticas, embora as pessoas reagissem com alguma reserva e com alguma resistência. Posso dizer que a Quadrum foi marcante para mim. Quer enquanto fruidor, quer enquanto coleccionador.

Hoje parece-me inegável a importância da Dulce d’Agro na modernização e na internacionalização do mercado. Na época as galerias eram poucas. Havia a São Mamede, com um bom grupo de surrealistas, e havia uma galeria de referência, que era a 111, e o papel pioneiro que o Manuel de Brito teve neste contexto. A Dulce contribuiu muito para a sofisticação das exposições desta natureza em Portugal, que passaram a estar na dignidade dos grandes espaços. Porque até aí vivíamos a arte em espaços que não se dedicavam exclusivamente a esta actividade. A Quadrum terá sido, porventura, a primeira a assumir-se como espaço expositivo autónomo ou independente.



Leonel Moura
Artista
Informação Online

A Dulce abriu uma galeria convencional, uma galeria comercial. Antes do 25 de Abril havia um boom comercial, vendia-se muita pintura, e a Dulce abriu a galeria para aproveitar essa dinâmica. Tinha o apoio do (José-Augusto) França e do Rui Mário Gonçalves... de certa forma tinha o apoio do establishment. Mas teve algum azar porque logo a seguir veio o 25 de Abril que acabou com o mercado. Os grandes coleccionadores deixaram de comprar e a Dulce vê-se a braços com um projecto fora de tempo. Porque em 1974 e 1975 ninguém ligava à arte! Quando a situação estabilizou, a Dulce percebeu que não podia regressar ao seu projecto inicial e aproximou-se do Ernesto de Sousa, que passa a ser uma espécie de consultor artístico. A partir daí, e mesmo sem que tal derive propriamente da sua visão artística, a Dulce consegue fazer uma das galerias de arte mais interessantes que Portugal conheceu até hoje. É uma galeria que começa a mostrar obra verdadeiramente inovadora num contexto bastante conservador. A Dulce começa a expor jovens artistas que se movem pelas áreas mais conceptuais... no fundo, um conjunto de artistas que são representativos do que de mais interessante se fez nos anos 1970 e em parte dos anos 1980.

Hoje voltamos a ter um boom de mercado, mas voltamos a ter também uma oferta extremamente conservadora. E não há uma galeria como a Quadrum. Não há uma atitude de aposta como a Dulce fez. Mas estas situações normalmente surgem sempre de períodos de grande dificuldade.

Para animar um bocado a situação, fizeram-se alguns cursos com artistas, debates, etc.. Mesmo com alguma dificuldade, lá vieram alguns artistas internacionais que, normalmente, faziam mais que a sua exposição e estavam disponíveis para os debates, em grande medida promovidos pelo Ernesto. Hoje não temos ninguém assim... Não temos ninguém que esteja atento ao tempo. O Ernesto estava sempre a tentar perceber o que estava a acontecer de novo, e o meio artístico precisa muito de pessoas com esse perfil, capazes de impulsionar dinâmicas.

A história da Quadrum é fruto de um conjunto de acasos: o 25 de Abril, a ruptura de mercado, a colaboração do Ernesto... De facto, a Dulce não era nada virada para as vanguardas. A sua própria pintura era claramente convencional, não era alguém que estava preparada para o lado experimental... Mas a Dulce tinha uma qualidade rara, que hoje dificilmente se encontra nos galeristas. A Dulce tinha uma certa dose de loucura, e era também por isso que nós gostávamos dela. Ela achava imensa piada ao trabalhos que nós estávamos a fazer... A exposição do Alberto Carneiro, com apenas uma pedra no centro da galeria, por exemplo, era algo arrojado... E a Dulce, mesmo que não percebesse completamente o que isso queria dizer, alinhava connosco e dava-nos condições para realizarmos as nossas exposições.

A internacionalização também teve muito que ver com a pressão que os artistas faziam sobre a galeria nesse sentido. Isso foi também algo que mudou com a minha geração. Antes de nós havia artistas que se exilavam, estavam fora durante um período mas acabavam por voltar. A nossa atitude era, de certa forma, o contrário: nós queríamos era sair daqui... Era o oposto. Queríamos sair, não queríamos voltar. A questão da internacionalização começa, a partir dessa altura, a dominar a cena artística nacional. Hoje já não estamos isolados. Mesmo estando aqui, já não estamos isolados.

As feiras com a Dulce serviam principalmente para estabelecer pontes com outros artistas e com outras galerias. Íamos a Bolonha e a Basel, que já tinha algum peso naquela altura. O mais importante era que, quando a Dulce ia lá fora, percebia que aquilo que estava a fazer cá tinha um eco sobre o que se estava a fazer ao nível internacional.

Nessa altura os artistas tinham imensa influência nas galerias. No fundo, os artistas é que faziam o programa das galerias. Aconselhavam muito e propunham artistas que admiravam... A ideia não era favorecer os amigos, era mesmo tornar o programa das galerias num programa forte, criar uma orientação coesa. E a Dulce confiava no Ernesto acima de tudo, mas nós também tínhamos alguma influência. Depois a Dulce percebeu que entrou numa “onda”, e enquanto ela via entusiasmo em nós foi navegando essa onda. Agora, aqui não havia mercado para isso. Os contactos da Dulce eram muito virados para a pintura e posturas mais tradicionais. Mas mesmo assim, de vez em quando lá se vendia qualquer coisa... Bom, e foi das primeiras galerias a apresentar “fotografia como arte”, como se dizia na altura...

Mais tarde o núcleo de artistas que trabalhava na Quadrum começou a dispersar. Abriram novas galerias e aquela dinâmica de grupo começou a desfazer-se. A Dulce acabou por começar a expor artistas mais convencionais, etc., e isso também nos desagradou... E acabei também por me desligar da Quadrum...



Carlos Nogueira
Artista
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É comovido que ao falar dela a relembro. Dulce D’Agro.

Foi na dupla qualidade de autor que expôs na Quadrum e na de visitante assíduo que contactei com essa figura singular.

Não sei se dominava a teoria das coisas com que trabalhava. Mas que tinha uma intuição finíssima e incessantemente procurava informar-se e ver tudo o que se fazia, era evidente. Fez da Quadrum um caso único.

Em tempos difíceis, ousou de forma notável no panorama das Galerias de Arte em Portugal. Arriscou. No plano da internacionalização concretizou objectivamente, tendo sido pioneira.

Abriu portas e generosamente deu portas a abrir.

Pela dedicação que transbordava em catadupas e entusiasmo incontinente, quando penso nela vem-me sempre à ideia a imagem de uma tempestade. Uma tempestade de que se gosta.



Miguel Palma
Artista
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Conheci a Dulce d'Agro numa exposição que fiz com o Mário Palma na Biblioteca Nacional em 1988. A exposição chamava-se Periferia.

A imagem que tinha da Quadrum na altura era a de uma galeria com passado. Eu vivia muito próximo da galeria (conseguia vê-la da casa dos meus pais). Lembro-me que inaugurou em 1972, tinha eu 8 anos, e foi na mesma altura em que se inaugurava a estátua de Santo António, acontecimento que me impressionou pela logística fantástica - gruas e por aí fora. Pouco depois a galeria mudou-se para os Coruchéus e mais uma vez a via de casa dos meus avós que moravam ali perto. Por vezes visitava a Galeria à hora do lanche, depois das aulas. Era muito miúdo. Tinha curiosidade por aquele espaço de que gostava e que me surpreendia. Ao longo dos anos fui tomando consciência da importância desta galeria no contexto das artes em Portugal.

Lembro-me de uma atitude sem receios e de um total entusiasmo por tudo o que fosse intencionalmente arrojado. O lado comercial nunca foi tema de conversa para a Dulce. No meu caso, e eu correspondo à fase final da actividade da galeria, senti liberdade total, desde a primeira exposição, em 1988, até 1999. Na Quadrum fiz as seguintes exposições Individuais: 1989, Ludo; 1992, Ordem; 1993, Olho Mágico; 1994, Crash-Test; 1999, Gerador (Palácio dos Coruchéus), esta já sob a programação do António Cerveira Pinto. Nas exposições colectivas participei em Arte Pública -Projecto & Ideias.

No que respeita aos apoios à internacionalização ou ao nível da produção de projectos, no meu caso foram inexistentes. Mas a possibilidade de fazer exposições impossíveis de serem feitas noutro lugar, foi, em si, um enorme apoio.

Numa altura em que o mercado de arte contemporânea era praticamente inexistente, e em particular após a revolução, a Dulce d'Agro foi um estandarte de coragem e perseverança. Além deste aspecto, a galeria abriu portas a artistas que apresentavam um novo tipo de abordagem artística, mais direccionado para as artes performativas, fotografia e vídeo. Tudo isto fica, obviamente, na História.



António Cerveira Pinto
Artista, Crítico, Proessor e Produtor
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A Dulce d'Agro foi sobretudo uma mulher abastada e cosmopolita, artista de formação, e casada com um arquitecto dotado de uma grande curiosidade intelectual e artística. Ambos correram o mundo, do Egipto ao MoMA, e é nesta precisa mundivivência que devemos encontrar a explicação para as características únicas da Quadrum. A percepção histórica da arte, apanágio do casal, condicionou seguramente o posicionamento cosmopolita e a atracção pelas vanguardas do novo lugar da arte, surgido na capital entre o fim da ditadura e o início do novo ciclo democrático. A Quadrum resultou da transformação de um espaço de restaurante sem uso, para uma galeria de arte desenhada com o melhor bom gosto da época.

A Dulce apostou sempre no cosmopolitismo e desejou sempre para o seu país a descolagem do provincianismo que caracterizava e ainda caracteriza a cultura portuguesa. Ela adorava o que era novo e até certo ponto radical! Sempre trouxe artistas estrangeiros a Lisboa, pelo seu próprio bolso, e sempre levou artistas portugueses às feiras de arte por onde andou: Madrid, Los Angeles, Basileia...

(No campo da formação de públicos, a Quadrum) foi sobretudo uma pioneira! Começou antes da Gulbenkian e de todos os museus que conheço no nosso país. O seu programa para crianças foi um sucesso educativo - para as crianças e para os pais que as acompanhavam...

Sei pouco deste capítulo, mas creio que do ponto de vista comercial Dulce d'Agro foi bem mais ingénua do que os que lhe sucederam no Olimpo do galerismo nacional. A Dulce foi sobretudo uma janela de oportunidade para muitos artistas portugueses. Creio que quem por lá passou o reconhecerá sem hesitação.

Seria correcto dizer que a Dulce foi deixando progressivamente a direcção da galeria a partir de 1990, assumindo o seu filho desde então uma presença quotidiana na Quadrum. A decadência estava à vista. Em 1993 e 1994, a pedido da Dulce, programei algumas exposições, tentando reavivar um projecto que entrara em declínio. Convidei João Álvaro Rocha, José Manuel Gigante, Miguel Palma, Paulo Mendes, Rui Serra, Carlos Vidal, João Louro, Leonel Moura, Pedro Portugal, Nuno Silva, Miguel Leal e Cristina Mateus. Já no fim de 1994, Fernando Santos tentou levar por diante a direcção da galeria, expondo nomeadamente Alan Davie, mas sem sucesso. A galeria fecha praticamente as suas portas entre 1995 e 1996, anos em que se realizam por junto 3 exposições. Em 1997 Dulce d'Agro é avisada sobre a possibilidade de despejo municipal, não admitindo a CML que o espaço se mantivesse fechado como esteve parcialmente durante os anos de 1995 e 1996, e totalmente em 1997 e 1998. Nesta emergência a Dulce insiste por mais de uma vez, de forma quase desesperada, para que tome conta da galeria, para que a mesma não feche, não podendo ela, dada a sua avançada idade, acudir à situação de despejo iminente. Por motivos vários, não foi nunca possível renegociar a cedência do espaço da Quadrum ao seu novo inquilino, e sem esta alteração estatutária, não me foi possível reunir os meios para dar uma continuidade à altura da história da Quadrum. Realizaram-se exposições interessantes, mas foi impossível parir, como desejei, uma segunda vida para este histórico projecto.



Ulrike Rosenbach
Artista
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Dulce d’Agro was a very enthusiastic art dealer and gallerist in the seventies. She had a lot of temperament and was very active at the time, with lots of interesting shows and artists - as I can say from my experience.
I had wonderful shows at her gallery. Its modern architecture was perfect for contemporary art. It seems that, at that time, her gallery had a very important role on introducing contemporary avant-garde art to the country.
Dulce d`Agro was a very intelligent and radical personality who had the guts to speak out for the avant-garde of arts at that time. Important enough to be known all over the international art-scene as part of the young network that started a new understanding of the new arts: photoart, performance and media art.



Catarina Rosendo
Historiadora da Arte e Investigadora

Trabalhei na Galeria Quadrum apenas durante dois meses, no final de 1998, pouco depois do António Cerveira Pinto ter assumido a sua direcção. Fisicamente, a Galeria estava muito parecida com o que tinha sido antes: a organização do espaço expositivo e mesmo o equipamento e mobiliário eram os mesmos que ainda hoje vemos nas fotografias e vídeos de exposições e happenings lá ocorridos na década de 70 e 80.

Tendo verificado nessa altura a permanência no local do espólio artístico e documental da Galeria, confrontei-me também com o seu estado de dispersão, carecendo em absoluto de tratamento. Em concordância com o director, e para além do inventário das obras existentes, tratei por isso de fazer um primeiro levantamento documental do que existia, entre catálogos de exposições, um excelente conjunto fotográfico de registo dos eventos aí ocorridos e artigos de imprensa. Isto permitiu organizar a cronologia expositiva da Quadrum, disponibilizada depois no site da Galeria.

A relevância da Galeria Quadrum no panorama artístico nacional da década de 70 e dos primeiros anos de 80 é indiscutível e penso que há três factores que atestam a sua importância. Em primeiro lugar, uma linha de acção claramente orientada para propostas artísticas experimentais, ligadas ao conceptualismo, à poesia experimental, aos happenings, ou ao vídeo, e que envolveu artistas como Alberto Carneiro, Ana Hatherly, Ana Vieira, António Palolo, Ernesto de Sousa, Fernando Calhau, Helena Almeida, José Conduto, José de Carvalho, Salette Tavares, etc., para além de artistas internacionais como Gina Pane e Ulrike Rosenbach.

Em segundo lugar, o facto das suas actividades ultrapassarem em muito aquilo que era, então, a norma de funcionamento das galerias de arte: a participação em feiras internacionais (como a Art Basel e a Arte Fiera, de Bolonha), a articulação das actividades da Galeria com programadores externos (caso de Ernesto de Sousa e dos seus Ciclos de Técnicas de Vídeo, Performance e Happening), as iniciativas de carácter pedagógico para crianças, os cursos de arte (julgo que a cargo de Rui Mário Gonçalves), etc..

Em terceiro lugar, a secundarização da vocação comercial, graças ao investimento da fortuna pessoal de Dulce d’Agro e do apoio da Gulbenkian, factor fundamental para a existência de uma margem de liberdade considerável nas opções de programação e também para a sobrevivência da Galeria no difícil período pós-revolucionário de crise do mercado artístico.

Neste momento de indefinição quanto ao futuro da Galeria Quadrum, é muito preocupante pensar no que pode acontecer ao seu espólio documental – não só aquele que eu conheci, mas também outro que não tenho memória de se encontrar na Galeria quando lá trabalhei, nomeadamente correspondência e processos relativos à organização das exposições, a representações em feiras internacionais, a vendas, aos apoios da Fundação Calouste Gulbenkian, às actividades pedagógicas, etc.

A Quadrum é um dos eixos para a compreensão do experimentalismo português sobretudo da década de 70, juntamente com o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra ou a mais tardia Cooperativa Diferença. Este facto justifica só por si que se considere seriamente a preservação do seu espólio documental. Os testemunhos directos e vivenciais da Galeria estão, inexoravelmente, a desaparecer e, se não se tomarem as devidas precauções, os testemunhos documentais tomarão o mesmo caminho, esquecidos, maltratados e potencialmente delapidados, por ignorância ou desconhecimento, por entre arquivos pessoais ou arquivos institucionais mortos.

À semelhança do que aconteceu recentemente com o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, poderá haver um dia alguém interessado num estudo académico sobre a Galeria Quadrum e ser impossibilitado de o fazer por não se conseguir localizar o seu espólio documental. Esta incúria relativamente à memória do passado recente tem como efeitos o encobrimento das genealogias artísticas nacionais, a convicção mais ou menos enraizada de se estar sempre a começar do zero e, claro, a criação de imagens “mitificadas” e deturpadas em relação a acontecimentos e contextos.

Para que a Quadrum não se transforme num “mito” e contribua realmente para aprofundar o conhecimento do que foram o universo galerístico e a actividade artística em Portugal nos anos em que funcionou em pleno, é fundamental assegurar que o seu espólio documental seja conservado e tratado, e que fique acessível à investigação, ou seja, que se crie, entre os seus actuais responsáveis, a consciência da absoluta necessidade de ele ser conduzido para uma de entre as várias instituições museológicas e/ou bibliotecárias especializadas que, entre nós, possuem meios humanos e técnicos para assegurar o seu futuro.



João Vieira
Artista
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A Dulce d’Agro não percebia nada do que era o trabalho de uma galerista. Ela era uma artista muito conservadora, uma artista à antiga. E tinha muito respeito pela perspectiva do (Fernando) Azevedo, do (José-Augusto) França e do Rui Mário Gonçalves. Ela era muito rica e era coleccionadora. Depois decidiu fazer uma galeria e aconselhou-se muito com o Azevedo. Comprou imensos artistas da escola de Paris, coisas bastante conservadoras. A exposição inaugural foi “comissariada” pelo Azevedo, que também participava enquanto artista.

A Dulce também tinha um atelier nos Coruchéus, ainda na altura do (Presidente da C.M.L) França Borges. Depois separou-se do marido, que era arquitecto, resolveu assumir a galeria como a sua aventura, e foi pedir ajuda ao Azevedo, que para além do mais fazia uma ponte com a Gulbenkian.

A partir de certa altura o envolvimento da Dulce com a Gulbenkian e com o Azevedo foi-se diluindo, até que aparece o Ernesto de Sousa que, depois de conhecer o Beuys, começou a interessar-se mais pelo experimentalismo.

Todas as galerias fecharam depois do 25 de Abril. O único que também se aguentou foi o Manuel de Brito com a Galeria 111. Mas a 111 já tinha compromissos nessa altura (com artistas e, portanto, com um programa já pré-estabelecido) e a Quadrum acabou por receber um conjunto significativo dos mais importantes artistas dessa época.

O Ernesto começa então a comissariar exposições para a galeria e começa também a fazer os cursos. No fundo, a galeria tinha o prestígio que tinha por causa do Ernesto. E o Ernesto entrou porque conseguia trabalhar quase sem dinheiro nenhum... E depois há também o facto de ter entrado uma colaboradora absolutamente extraordinária, que é a Maria da Graça Carmona e Costa, que era amiga da Dulce e que entrou na altura também do 25 de Abril. De facto, quem vendia e aguentava a Quadrum era a Maria da Graça. Se alguém fez ali algum trabalho foi o Ernesto, enquanto comissário, e a Maria da Graça enquanto “marchand”. Só por mero acidente é que a Dulce foi galerista. Agora, gostava imenso de arte... de uma forma romântica...

O Ernesto a certa altura passou a trabalhar mais com a Diferença, onde estava mais à vontade porque, de certa forma, ainda havia exposições na Quadrum com as quais o Ernesto não concordava. E na Diferença ele estava convencido que ia conseguir fazer uma escola... O Ernesto fazia tudo com um espírito militante... mas eram utopias... utopias que, às tantas, ele próprio tinha dificuldade em transformar...

Depois a galeria começa a estar meio ao abandono, o espaço começa a degradar-se, com inundações, etc... A Dulce, a certo ponto, perdeu o controle das coisas...



Pires Vieira
Artista
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Conheci a Dulce d’Agro em 1975. Tinha acabado de regressar de Paris, onde estava exilado e, por isso, não assisti ao começo da galeria. No entanto, sei que as primeiras exposições, antes de 1974, acontecem num momento de uma certa euforia económica com a primavera marcelista e são muito consensuais com o bom gosto da burguesia culta da época. Karel Appel, Vasarely, etc., são apostas sem quaisquer riscos e marcadas pela influência dum meio francês, ao qual a Dulce se sente ligada pela suas experiências e aprendizagem artística, com particular ligação à Escola de Paris. Com a crise que se segue a 1974, o mercado que incipientemente se desenhava desaparece, e é com a venda das obras destes artistas, por vezes a cotações abaixo do mercado, que a Dulce consegue aguentar a crise. É nessa altura que a galeria faz uma viragem para artistas mais jovens, de práticas muito heterogéneas, mas que se agrupam no que se designava, na altura, por vanguarda portuguesa.
Esta mudança de enfoque é consequência de vários factores. Por um lado, dá-se a abertura do país em geral à comunidade internacional e organizam-se sucessivas embaixadas artísticas a vários países europeus – estas sob a orientação de Rui Mário Gonçalves que, por sua vez, passa a apontar certas escolhas à Dulce, reforçando opções bem defendidas no seu projecto da galeria/livraria Buchholz. Por outro lado, foi também importante a aproximação do Ernesto de Sousa, sobretudo a partir de 1976, com projectos de artistas mais conceptuais e performativos, como a Gina Pane, a Ulrike Rosenbach, etc..
Acrescentaria que, entre as presenças de Rui Mário Gonçalves e Ernesto de Sousa, há uma outra figura que aparece com alguns projectos de intercâmbio importantes, e que é o Egídio Álvaro. Vivendo há vários anos em Paris, e tentando mostrar alguns artistas que lhe estão próximos, o Egídio Álvaro traz também alguns artistas ligados a uma segunda geração da vanguarda francesa da altura (Support/Surface).

Ou seja, a Quadrum era uma galeria que apostava na vanguarda artística e no intercâmbio com artistas estrangeiros, tentando, desta forma, mostrar os artistas portugueses em galerias estrangeiras.

Mais tarde, a confusão do chamado pós-modernismo, particularmente no âmbito das artes plásticas, foi sentida pela Dulce como uma necessidade de entrar na corrente. Ricamente começaram a aparecer os novos selvagens e a bad painting nacional que, no fundo, não era mais que a mediocridade disfarçada, e que ousava mostrar-se devido à permissividade das modas. A presença de várias correntes nitidamente contraditórias na Quadrum era um factor que gerava tensões. Estas, por sua vez, acabavam por passar para as relações que a Dulce estabelecia com os artistas. Alguns dos artistas que a galeria ainda mantinha começaram a optar pelas galerias que entretanto tinham surgido. Julgo que a partir de meados dos anos 1980 a Quadrum já não mantinha nenhum dos artistas que estiveram nos tempos seguintes a Abril de 74. No final dessa década a gestão da galeria passou a ser entregue ao Miguel, filho da Dulce, que tinha uma péssima relação com os artistas e um arrogante desdém pela arte em geral...

No que respeita à internacionalização, a Dulce tinha uma visão que hoje classificaríamos como ingénua. A Dulce acreditava que através do intercâmbio com galerias estrangeiras e da presença de artistas portugueses em feiras de arte internacionais se conseguiria fazer passar os artistas lá para fora. As apostas acabavam por falhar, quer por falta de logística, quer pela fragilidade do mercado nacional.

No meu caso pessoal, a Dulce organizou-me uma exposição em Paris na galeria L'Oeil 2000 (na altura, uma boa galeria que trabalhava com gente do Support/Surface à qual eu estava ligado), e na qual eu mostrava pintura de grande dimensão e o Jean-Pierre Pincemin mostrava gouaches. Os meus quadros chegaram dias depois da exposição inaugurar porque o Sommer Ribeiro, na altura responsável pelos Serviços de Exposições da Gulbenkian, esqueceu-se de os enviar. Em troca dessa exposição veio o Marc Devade com uma boa exposição, embora completamente ignorada e sem qualquer repercussão ao nível das vendas.

Os apoios da Gulbenkian à Quadrum eram pontuais, projecto a projecto, e eram atribuídos depois de muito esforço e muita insistência por parte da Dulce. Geralmente chegavam tarde e eram sempre demasiado curtos em relação ao orçamento de cada iniciativa.

Fosse por falta de informação, fosse por deficiente formação académica dos funcionários do Serviço de Belas Artes e do Serviço de Exposições e Museografia da Gulbenkian, era notório que havia na instituição uma crassa falta de visão. Refiro-me obviamente ao pintor Fernando de Azevedo (como se sabe, figura importante do muito tardio surrealismo português, mas para quem as vanguardas pós 1960 não eram de todo familiares) e ao arquitecto Sommer Ribeiro (um arquitecto sem obra, exceptuando a Casa de Portugal na Cité Universitaire de Paris, e cuja ancoragem à pintura se fazia por referências à École de Paris, e particularmente a Vieira da Silva). Isto seria suficiente para explicar a iliteracia artística da época; um laissez-passer razoavelmente sólido. Era este o quadro com o qual a Dulce se debatia sempre que tinha que encontrar alguns dinheiros, para além dos dela, para aguentar a Galeria e os seus projectos.

Havia uma ignorância total em relação às ultimas vanguardas europeias e americanas. Movimentos como o Fluxus, o Accionismo Vienense e outras práticas ligadas à performance, eram praticamente desconhecidos. Neste contexto, quando eram pedidos apoios para uma acção performativa - como a da Gina Pane, por exemplo - não havia qualquer eco ou referência que enquadrasse a elaboração dum parecer por parte da Gulbenkian, e que pudesse desbloquear qualquer tipo de financiamento.

Num quadro nacional deste género, o esforço pessoal da Dulce acaba por ser completamente inglório. Os apoios financeiros eram praticamente nulos e esta situação era o resultado da forma mesquinha como alguns agentes quiseram assegurar as suas posições, por riscos que nunca tiveram a coragem de assumir.

Num país saloio e mesquinho, o projecto Dulce d'Agro tinha obrigatoriamente os dias contados. Contados pelos tostões que se esgotavam (os pessoais largos, e os institucionais parcos), e contados por oportunismos vários, e que se iam sucedendo à medida das ocasiões.

A luta da Dulce pelo projecto da galeria, pelos artistas, e pela arte portuguesa, foi uma luta solitária. Foi uma luta feita à custa do seu próprio esforço financeiro, contra a família, primeiro, e, depois, contra toda a ignorância, conservadorismo e mesquinhez do meio. Aguentou até onde pôde. Hoje, ninguém a pode culpar de não ter sabido guardar o capital de experiência adquirido no inicio, naquela segunda metade dos anos 1970, tão clara e infelizmente desbaratado na década seguinte.

Para aqueles que a acompanharam inicialmente na aventura das demandas e dos projectos irrealizados, fica o grato e excitante sentido de pertença que une todos aqueles para quem o incómodo é quase uma questão ontológica.