10.1.10

FERNANDO CALHAU (1948-2002)

La Manière Noir1

Fernando Calhau
Colecção CAMJAP - Fundação Calouste Gulbenkian
Foto: Cortesia CAMJAP - Fundação Calouste Gulbenkian


Sonhar com uma pintura. Visualizar (em sonho), e com o mais apurado detalhe, as suas características formais. Registá-la em esquema, por via do desenho. Projectá-la com o recurso à memória. Respeitar as marcações. Seguir o plano traçado. Executar. Saber exactamente, e sempre, o lugar que ela poderia ocupar. Desenhar todos os dias. A preto e branco. Procurar adicionar ainda mais negro ao negro. Adivinhar a noite e persegui-la arduamente. Ver Arte. Saber ver. Descodificar a Pintura. Procurar inscrever-se na sua história. Rir muito, quase todos os dias. Sobretudo de si.

Eis uma figura de carácter discreto e aprumo cerebral, de contornos assumidamente contraditórios, que na memória de alguns ficou, até à data, como o mais interessante artista português contemporâneo.

 

O moço artista2

Lisboa, final dos anos 60. Fernando Calhau inicia os seus estudos superiores de Pintura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Aí conhece alguns dos que viriam a ser os seus amigos mais próximos, a quem começa por impressionar com uma invulgar curiosidade visual e um, à época, elevado know how técnico. Luís Serpa, seu colega no primeiro ano, recorda que "ele vinha já como O ARTISTA, e não como o aprendiz de artista."

De facto, Fernando Calhau, por influência directa do pai (designer gráfico), havia iniciado, algum tempo antes, as suas investigações visuais e técnicas ao nível da gravura, na Cooperativa Gravura em Lisboa. É aí que começa a desenvolver as coordenadas que viriam a definir o corpo matricial do seu trabalho: a questão da serialidade, do apagamento cromático, da reprodutibilidade mecânica amplamente devedora de uma execução necessariamente manual, da decomposição espácio-temporal através da reprodução fotográfica, sempre aliadas a um prazer implícito no fazer e no tempo de duração desse fazer.

Aos excessos próprios da época vem juntar-se uma curiosidade natural pela descoberta de novos estímulos visuais. Julião Sarmento, aponta que "no fundo, foi o pai do Calhau que nos mostrou que existia a Arte Americana, porque tinha as revistas de design e de vez em quando apareciam umas coisas do Andy Warhol, e nós aí começámos a juntar dois e dois (...) e começámos a ir à Embaixada Americana onde passávamos tardes a ver a Art in America e a Artforum.".

A precocidade é portanto, no percurso de Fernando Calhau, uma tónica. É nestes anos, e ainda enquanto estudante, que realiza as suas primeiras exposições individuais: "Gravuras Brancas" na Galeria Gravura, Lisboa (1968); "Pintura", na Galeria Quadrante, Lisboa (1970), "Pintura", na Galeria Judite da Cruz, Lisboa (1972) e "Desenhos" na Galeria de Arte Moderna, Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa (1973), valendo-lhe o reconhecimento generalizado e unânime dos mais distintos quadrantes da crítica nacional. Segundo Delfim Sardo: "o Ernesto de Sousa e o José Augusto França, o Rui Mário Gonçalves, o Fernando Pernes, o próprio Fernando Azevedo. Todos eles tinham um apreço enorme pela obra do Calhau, curiosamente. (...) provavelmente a obra do Calhau reunia características que agradavam a ambos, por motivos diversos."

Também do mercado não se podia queixar Fernando Calhau: "Antes do 25 de Abril houve um mercado muito forte. Tão forte que eu chegava a vender quadros em exposições de outros artistas a que ia. Havia pessoas que quase me impingiam os cheques para comprarem quadros."

A sua pintura, de recursos mínimos, em que a opção por uma forma definida (o quadrado, maioritariamente) e a redução da paleta a gradações tonais entre branco e negro, parecia ir ao encontro de um público de gosto moderno e com clara consciência do elevado potencial de valorização da arte moderna. E acrescenta Delfim Sardo: "o Calhau (...) depois de fazer a exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, saiu da exposição, no primeiro dia, e foi comprar um Mini, que era um carro caro na altura!".

No ano de 1973 coincidem o final do curso de Pintura (após a conclusão da série de pinturas verdes que o tinham levado ao que apontava, para si, como o esgotamento da pintura)  e a atribuição, pela Fundação Calouste Gulbenkian, de uma bolsa para a frequência de estudos de pós-graduação na Slade School of Fine Art em Londres, que visaria o aprofundar dos estudos de gravura com Bartolomeu Cid dos Santos, onde permanecerá até 1975. Uma célebre fotografia do grupo de alunos e professores da Slade School, onde se destacam Fernando Calhau e Bartolomeu Cid dos Santos empunhando um cartaz onde se lê "Army Revolt in Portugal", documenta a forma como em 1974, e à distância, era vivido o facto da Revolução.

Regressado a Portugal em 1975, apresenta, numa exposição na Fundação Calouste Gulbenkian o resultado do trabalho realizado em Londres: um conjunto de obras que resultam da combinação de diversas técnicas de gravura, entre elas a foto-gravura e o ozalide, e em que o interesse pelas relações entre espaço e tempo, entre o olhar, o ponto de vista e o tempo da duração desse olhar, no fundo questões de percepção, se manifestam agora como a tónica dominante da sua investigação. É também nesta fase, e ainda durante a estadia em Londres, que começa a usar o filme Super 8 como mais uma ferramenta para a investigação que perseguia. O plano fixo, a duração do olhar determinada pela exacta duração das bobines, o ponto de vista que recusa o jogo hierárquico da paisagem, ou, numa obra um pouco atípica mas muito sintomática ("Destruição", 1975), a anulação total do lugar e da figura do autor através da imagem metafórica da marca da mão que é apagada justamente por uma marca produzida por essa mão, dando origem a uma imagem monocromática de um negro total, que cintila bruscamente no ecrã até acabar a bobine. Em 1976 escrevia Ernesto de Sousa: "Nos últimos tempos, as experiências de Calhau inflectem-se no sentido de uma inquietação conceptual, com utilização da imagem neutra e referências ao-gesto-que-aponta. (...) O vazio e a indiferença (neutralidade) de Calhau inscrever-se-iam numa vasta operação (...) cujo fim parabólico é fazer ver e escutar."

Não podemos deixar de estar de acordo com Ernesto de Sousa neste ponto, e é justamente aqui que reside parte do nosso interesse pela obra deste autor. De facto, Fernando Calhau procurou, nestas obras, como já nas gravuras brancas ou nas pinturas monocromáticas anteriores, atrasar, ou melhor, abrandar o ritmo do olhar, do seu olhar e, necessariamente, o do nosso. São obras exigentes, que, implicando um longo tempo de permanência, requerem do espectador qualidades de observação que vão para além da análise estética.

 

Um emprego

Com a crise petrolífera de 1973, verificou-se em Portugal uma retracção no mercado que veio a acentuar-se significativamente, no ano seguinte, com o 25 de Abril. Fernando Calhau, ausente em Londres durante este período, encontra na chegada a Lisboa, e ao contrário do que acontecera até aí, sérias dificuldades em veicular a circulação comercial do seu trabalho.

Em 1976 recebe um convite para integrar a equipa da Secretaria de Estado da Cultura (sendo, à época, director geral Eduardo Prado Coelho e secretário de estado David Mourão Ferreira). Encontra aí um terreno livre para trabalhar numa outra área que lhe trazia muita satisfação: a concepção e organização de exposições. Diz: "comecei a tentar fazer alguma coisa - mais exactamente a tentar preparar a Lis, que era uma exposição internacional de desenho, mas que pretendia, mais tarde, passar a bienal de Lisboa." Projecto entusiasmante, absolutamente pertinente, mas simultaneamente devastador (com o incêndio ocorrido em 1981, que destruiu todo o espaço da Galeria Nacional de Belém, todo o espólio e equipamento aí existentes e todas as obras já seleccionadas para a segunda Lis).

Os projectos foram-se somando mas, diz ainda: "depois, foi-se de situações de verificação de impossibilidade em verificação de impossibilidade. (...) Começou a ver-se que a Cultura era mesmo um penacho no chapéu do governo e que não valia a pena."

Vai, apesar de tudo, consolidando a sua carreira na Secretaria de Estado até ser convidado, em 1996 para dirigir o, recentemente criado, Instituto de Arte Contemporânea, que é, em grande medida, um projecto seu e que surge da necessidade de criação de uma estrutura ligeira, desburocratizada e relativamente autónoma que veiculasse, por um lado, o apoio à criação (através do apoio directo aos criadores ou à produção de exposições) e, por outro, o apoio à divulgação e à criação de públicos (através de programas de internacionalização e de descentralização).

A sua carreira institucional termina em 2001, ao fim de 25 anos, em que grande parte do seu tempo criativo foi sendo partilhado com o tempo criativo de outros, mas em que, embora com dúvidas, persistiu em nunca cessar definitivamente a sua actividade artística, tendo, apesar de tudo, tido períodos de grande abrandamento criativo.

Na sua obra trabalhava sobretudo à noite, no seu atelier, em casa.

 

A cápsula da noite

 É na sequência das suas investigações sobre o espaço e o tempo que surge em 1978 uma nova série de trabalhos, ainda de tipologia fotográfica mas com contornos bastante distintos, os "Night Works". É aqui introduzida, pela primeira vez, uma dimensão de envolvência global, de súmula espácio-temporal produzida a partir de longas exposições nocturnas que anulam o horizonte e a presença das formas para conferirem às imagens apenas duas dimensões de contraste (o branco e o negro). A estas eram somadas imagens monocromáticas negras ou azuis e, em alguns casos, e também pela primeira vez, palavras em néon (ou melhor, em árgon, que Calhau considerava possuir uma intensidade lumínica e cromática muito próximas do luar).

Estas imagens servem agora uma ideia que ultrapassa a dimensão conceptual para se inscrever, pela primeira vez no seu percurso, num território de contornos assumidamente simbólicos, abrindo-o a uma esfera romântica. Segundo Delfim Sardo: "Umas vezes romântica, outras vezes até mais, até gótica. E isso tinha a ver com o lado sombrio da personalidade dele. Não tenho qualquer dúvida." Para Julião Sarmento: "Não eram bem poéticos, eram mais desesperados do que poéticos ... (...) isso vem da solidão do Calhau (até porque estas coisas não nascem por acaso) e da maneira como a vida dele se estruturava e como ele a via esboroar-se, e no poço de contradições que existia dentro dele, que era se por um lado tinha a perfeita noção e a vontade imperativa de ser um artista extraordinário, por outro lado ... ".

Os "Night Works" abrem assim um território novo de possibilidades, que dão origem, já nos anos 80, por um lado a uma nova série de pinturas monocromáticas configuradas (shaped canvases), e por outro à utilização das palavras em árgon associadas agora a enormes placas de ferro que aparecem como resposta a uma espécie de fascínio sensorial pelo peso e pela ideia espacial de peso.

Fernando Calhau era dotado de uma capacidade extraordinária para observar, para ver as coisas e simultaneamente o lugar das coisas, era exímio na forma de ver arte e era também exímio na forma de instalar obras de arte. "(...) há pessoas assim, que ouvem compulsivamente, por entre o silêncio e os pequenos ruídos, outras vêem compulsivamente. Fazem analogias visuais a velocidades estonteantes, à velocidade de uma inteligência muito rápida, como se fossem sensíveis a um eco visual das coisas que são, normalmente só coisas."3

Olhamos para estas obras e percebemos isso imediatamente. São aquilo que são e ainda o lugar onde estão. Vivem num constante namoro com a arquitectura, com o espaço interior, definido e confinado. É como se  transportassem sempre, em si, essa definição do lugar onde pertencem e isso deve-se, em nosso entender, justamente à forma como Fernando Calhau praticava e exercitava uma espécie de compulsão pela suspensão do instante, do tempo e pela suspensão do espaço, como que em resposta a uma necessidade de controlo tenso desse mesmo espaço.

 

O imperativo da Pintura

Fernando Calhau não tinha, no entanto, de si a imagem de um Artista, em sentido lato. Dizia-se assumidamente um Pintor.  Na opinião de Delfim Sardo: "o Calhau olhava sempre para o seu trabalho como um trabalho que se situava sempre na tradição da Pintura. Era daí que ele vinha. E portanto, o trabalho dele era um prolongamento dos problemas da prática da pintura tal como ela vinha desde o Renascimento."

Era, de facto na tradição da Pintura que Calhau pretendia inscrever-se mas quando usava a pintura, usava-a seguindo a metodologia comum ao trabalho com outros media: projectava-a (normalmente através de um desenho esquemático preparatório) e depois executava-a, simplesmente. À secura deste processo era aliada uma ferramenta operativa de avaliação que definia, uma vez a pintura pronta, se funcionava ou não funcionava, isto é, se cumpria os requisitos iniciais que presidiram à sua projecção como pintura.

Em 1995, numa exposição a duo com Michael Biberstein na Galeria Porta 33 e na Fortaleza de S. Tiago, no Funchal, com o título "Paint it Black", Fernando Calhau apresenta pela primeira vez uma série de pinturas que se podem inscrever num outro compartimento da tradição da Pintura. São pinturas de "pergunta/ resposta", isto é, são pinturas que não respeitam um projecto prévio, e que se vão construindo sobre a tela à medida que vão surgindo questões e decisões para tomar. Confrontado com esta alteração Calhau refere: "mas agora é muito mais divertido, porque tenho muitos mais aspectos a requerer atenção. Não estou a construir uma superfície, estou a construir outra coisa, a tomar dimensão, porque a luz aparece de vários pontos da pintura e torna-se totalmente irrelevante. Nunca sei como vai terminar, como se vai desenvolver. Portanto, tenho que julgar em cada momento, fazendo. E isso é divertido."

São também pinturas que voltam a aproximar-se muito de uma estética romântica, em que o negro assume a sua qualidade simbólica de desconhecido e se desdobra em valores tonais ligeiramente mais claros conferindo-lhes nuances muito atmosféricas e, de certo modo, até paisagísticas. Não são representações, mas são evocações. Voltam a transportar consigo uma memória da noite.

Numa série de outras pinturas apresentadas numa exposição na Galeria Cristina Guerra Contemporary Art, em 2001, Fernando Calhau volta a perseguir estas questões. Mas aqui, recorrendo exclusivamente ao formato quadrado, coloca em confronto, de uma forma muito evidente, duas questões fundamentais na sua prática: uma tradição minimalista de execução industrial (que rejeita a manualidade) em oposição justamente à proficiência e ao rigor manual próprios do seu fazer. Tudo, na observação destas pinturas, é descoberta. Quanto mais detalhe conseguimos discernir, mais necessidade temos de investir na observação desse detalhe.

No texto publicado, a este propósito, no catálogo, João Miguel Fernandes Jorge afirma que "Uma tempestade esconde sempre a alma dessa tempestade." São, de facto obras duras, de uma enorme secura, mas que, à semelhança da tempestade de que fala João Miguel Fernandes Jorge, encerram justamente em si, em cada detalhe, a alma que lhes preside.

 

A constância do Desenho

Num texto escrito por Rui Chafes, a propósito de um ciclo de mesas redondas programadas por Nuno Faria no âmbito da exposição que comissariou para o CAMJAP - Fundação Calouste Gulbenkian, em 2006, e colocando-se no ponto de vista de um artista que observa e analisa a obra de um outro artista, diz Rui Chafes: "Para mim, a ideia de desenho parte de um local, do nosso ponto de partida: 'ser é estar num ponto'."

O desenho aparece na obra de Fernando Calhau como uma espécie de respiração, de impulso respiratório ritmado, ora cambiante ora repetitivo. Atravessa todo o seu percurso e tem um lugar maior no corpo da totalidade da sua produção. Ora é verbo, ora substantivo ... ora é chão preparatório para a edificação da obra, ora é a obra ela mesma.

No espólio pertencente à Colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian encontram-se desenhos datados entre 1965 e 2002 (precisamente o período de tempo que baliza aquilo que consideramos, no caso de Fernando Calhau, como carreira). Através destas obras pode confirmar-se, por um lado, o muitíssimo dotado desenhador que Calhau foi e o quanto a disciplina se constituía para si como ferramenta operativa de pensamento, e por outro, o enorme espaço de liberdade que ocupou no seu percurso, uma vez que encontramos ali também inúmeros registos soltos, desgarrados, próximos de exercícios de treino de mão, que nos inquietam porque acrescentam uma dimensão de intimidade à qual provavelmente não precisaríamos de ter acesso.

Também o seu desenho pensa a Pintura, ou é também através dele que Calhau pensa a Pintura. Segundo Vítor da Silva "fala-nos da memória da pintura, da sua possibilidade e do seu esquecimento, e sobretudo da sua exigência e 'sobrevivência'.". Mas é também retórico e auto-reflexivo na medida em que, ao contrário da Pintura que ilude o espectador, este se mostra tal como é, se desvela e denuncia os processos inerentes à sua própria construção. Entrevem-se-lhe as camadas, a sobreposição de linhas, a sequência e orientação dos traçados mas sobretudo, o tempo da sua execução.

 

O maior de todos os imperativos

"Trabalhei um ano e meio no atelier de quem tinha seis meses de vida para viver a sua obra: o tempo, a vida, o limite da matéria, o preto com todas as suas nuances... Uma obra grave de uma pessoa dotada de um humor feroz capaz de perturbar a sensibilidade dos mais pudicos." escreve Diogo Pimentão em resposta a um desafio que lhe lançámos no decorrer da preparação deste artigo e que em muito nos ajudou a concluir que, no cumprimento do seu desígnio lento, faltou a Fernando Calhau, sobretudo, tempo. Mas que mesmo sem conseguir cumprir na totalidade o seu plano, nunca se afastou de um programa ético, a todos os títulos recomendável:

 "A coerência conceptual, que não haja desvios aos princípios com que me tenho orientado, ao meu programa - que as pinturas tenham uma continuidade, que funcionem face a um espectador, que façam sentido dentro da série, que não sejam a mais, que reafirmem o que lhes está para trás. (...) há algumas coisas que para mim são importantes. A coerência é importante, embora não seja, hoje em dia, muito valorizada. A lucidez é muito importante. Não se perder de vista, ser capaz de analisar. A honestidade de trabalho é fundamental - não suporto a desonestidade criativa. Estes são os princípios que me interessam. (...) Estou preso a uma geração que tinha os pés na terra. Preso à coerência. (...) Trabalhamos todos para uma imanência, para um cruzamento que há-de acontecer. (...) É preciso trabalhar sempre sem nada na manga e sempre sem rede."

Embora lhe tivéssemos seguido bem de perto o percurso, não chegámos a conhecer Fernando Calhau, mas gostávamos de o ter conhecido.

 

Ana Anacleto

 

 ---------------

1 Processo inventado no século XVII por Ludwig Van Siegen também conhecido como método de reprodução, que permitia a cópia fiel dos valores da pintura original. Tendo caído em desuso devido à proliferação de outras técnicas, foi retomada por inúmeros artistas contemporâneos que apreciavam o seu carácter rigoroso e moroso mas extremamente rico em termos de nuances e valores. (...) Maneira negra é, tal como o nome indica, uma gravura que parte do negro, passando por todos os valores até ao branco. O princípio da sua técnica consiste em provocar sobre o cofre uma espécie de rede fina e compacta, comportada por pequenos pontos ou furos, de maneira tal, que fazendo uma prova de uma chapa assim tratada, essa prova será negra. O caminho até ao branco implica um longo e demorado processo.

Jorge, Alice / Gabriel, Maria, in Técnicas de Gravura Artística - Colecção Estudos de Arte, Livros Horizonte, Lisboa, 1986, pp. 56-57

 2 França, José Augusto, "Fernando Calhau", in Colóquio Artes, s.2, a.15, nº13, Lisboa, Junho 1973, p.11

 3 Sardo, Delfim, "Fernando Calhau. A Polaroid", in suplemento do jornal Público de homenagem a Fernando Calhau, Julho 2002

 

---------------

AGRADECIMENTOS:

Bruno Marchand

Delfim Sardo

Diogo Pimentão

Luís Serpa

Nuno Faria

Michael Biberstein

Isabel Carlos

 e muito especialmente a:

Julião Sarmento


---------------

OUTRAS IMAGENS

---------------


BIBLIOGRAFIA:

Alves, Clara Ferreira e Calhau, Fernando. Passageiro Assediado, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001

Caldas, Manuel Castro. "O Quadro e a Moldura [notas sobre Fernando Calhau]" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 25-30

Calhau, Fernando. in Fernando Calhau, Museu Nogueira da Silva - Universidade do Minho, Braga, Fevereiro 1997, p.1

Chafes, Rui. "Ser é estar num ponto" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 31-35

de Sousa, Ernesto. in Fernando Calhau, Fundação Calouste Gulbenkian - Galeria de Exposições Temporárias, Lisboa, Agosto 1975, pp.3-4

de Sousa, Ernesto. "Fernando Calhau e o vazio como angústia", in Colóquio Artes, s.2, a.18, nº27, Lisboa, Abril 1976, pp. 31-39

de Sousa, Ernesto. in Alternativa Zero: tendências polémicas da arte portuguesa contemporânea, Secretaria de Estado da Cultura, Lisboa, 1977

Faria, Nuno. "Fernando Calhau: desenho, modo de usar" in Fernando Calhau: desenho 1965 - 2002, Centro Cultural Vila Flor, Guimarães / Assírio & Alvim, Lisboa, 2007, pp. 7-13, p.17, p.69, p.97

Faria, Nuno. "Fernando Calhau: Dessin", in Fernando Calhau: Dessin, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, Paris, Março 2005, pp.7-11

Faria, Nuno. in Convocação I e II (Modo Menor e Modo Maior). Obras no Acervo do CAMJAP, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006, pp. 10-13, p.17, 21, 31, 97, 121, 129, 135, 139, 157, 177, 193, 207, 221, 233, 253, 259

Faria, Nuno. "Teoria das Excepções [da escuta]" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 93-96

Fernandes, João (coord.). Perspectiva: Alternativa Zero, Fundação de Serralves, Porto, 1997

França, José-Augusto. "Fernando Calhau", in Colóquio Artes, s.2, a.15, nº13, Lisboa, Junho 1973, pp.11-13

França, José-Augusto. in Quadrum Galeria de Arte: exposição de artistas modernos portugueses, Galeria Quadrum, Lisboa, 1973, pp. 5-6

Gonçalves, Rui Mário. in Onze jovens pintores portugueses, Instituto Alemão de Lisboa, Lisboa, 1984, pp. 1-4

Guerra, Pedro. "Fernando Calhau. O regresso à normalidade" in Arte Ibérica, nº21, Ano 3, Lisboa, Fevereiro 1999, pp.12-13

Jorge, Alice e Gabriel, Maria. "Maneira negra" in Técnicas de gravura artística: xilogravura, linóleo, calcografia, litografia, Livros Horizonte, Lisboa, 1986, pp. 56-57

Jorge, João Miguel Fernandes. "Fernando Calhau" in Abstract & Tartarugas, Relógio d'Água, Lisboa, 1995, pp.192 - 194

Jorge, João Miguel Fernandes. "Fernando Calhau" in Abstract & Tartarugas, Relógio d'Água, Lisboa, 1995, pp.352 - 354

Jorge, João Miguel Fernandes. in Fernando Calhau, 00.01, Galeria Cristina Guerra Contemporary Art, Lisboa, 2001, pp. 7-10

Jorge, João Miguel Fernandes. "Um passo no escuro" in Rui Chafes, Fernando Calhau: um passo no escuro, Museu da Cidade - Pavilhão Branco, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 2002, pp. 13-27

Jorge, João Miguel Fernandes Jorge. "Convocação I e II. A propósito da arte de Fernando Calhau" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 63-69

Maia, Tomás. "O Gesto da Arte [O segredo do artista, 2]" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 71-91

Michaud, Philippe-Alain. "Quase Monocromo" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 37-46

Molder, Jorge. in Convocação I e II (Modo Menor e Modo Maior). Obras no Acervo do CAMJAP, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006, pp. 7-9

Molder, Jorge. "Abertura" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp.7-8

Molder, Jorge. in Work in progress, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001, p.23

Nazaré, Leonor. "Fernando Calhau" in Transfert - Galeria Lino António (Escola António Arroio), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 1-2

Neves, Joana. "Fernando Calhau: pinturas e desenhos" in Arte Ibérica A.5, nº46, Lisboa, Maio 2001, pp.14-18

Pernes, Fernando. in A fotografia como arte, a arte como fotografia, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1979, pp. 10-11

Pinharanda, João. "Uma obra ao negro", in Público, Ano XIII, nº4467, Lisboa, 13 Junho 2002, pp.40-41

Pomar, Alexandre. "Fernando Calhau. Não há lugar para desperdícios", in Expresso (Revista), Lisboa, 7 Dezembro 1996, pp.98-103

Rato, Vanessa. "Todos os pintores contam a mesma história durante toda a vida", in Público, Lisboa, 21 Outubro 2001, pp.38-39

Santos, Armando Vieira. in Calhau, Galeria Gravura, Lisboa, 1968, p.1

Sardo, Delfim. "Fernando Calhau" in Artes & Leilões, A.4, nº16, Lisboa, Set-Out 1992, pp.63-65

Sardo, Delfim. "A Razão Sensível", in Calhau: Desenhos, Galeria Coluna, Braga, Novembro 1991, pp. 1-2

Sardo, Delfim / Biberstein, Michael / Calhau, Fernando. in Paint it Black: Calhau / Biberstein, Galeria Porta 33, Funchal, Madeira, 1995, pp. 7-12

Sardo, Delfim. "O mapa da noite é como o mapa do mar. Tópicos sobre o trabalho de Fernando Calhau a propósito desta exposição" inWork in progress, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001, pp. 26-30

Sardo, Delfim / Calhau, Fernando. "Sem rede. Uma conversa com Fernando Calhau, em quatro noites de Fevereiro de 2001" in Work in progress, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001, pp. 49-237

Sardo, Delfim. "Fernando Calhau. A Polaroid", in suplemento do jornal Público de homenagem a Fernando Calhau, Julho 2002

Sardo, Delfim. "A pequena noite. 5 propostas para olhar a obra de Fernando Calhau" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 49-62

Silva, Vítor da. "ET SIC IN INFINITUM. O desenho de Fernando Calhau" in Convocação: Leituras, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp. 11-23

Vidal, Carlos. "Fernando Calhau" in Sinais, Galeria Pedro Oliveira/ Roma e Pavia, Porto, Junho 1990, pp.3-5

von Drathen, Doris. "Cicatrizes na sombra" in Work in progress, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001, pp. 36-41

-

"Calhau rosa", in O Independente, Lisboa, 19 Abril 1996, p.57

Calhau, Galeria Judite da Cruz, Lisboa, 1972

Fernando Calhau, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1980 (obra publicada por ocasião da exposição no âmbito da 11ªBienal de Paris, 1980)

Modulo: a new selection, Modulo - Centro difusor de arte, Porto, 1977 (obra publicada no âmbito da Cologne Art Fair, em Colónia, Alemanha, 1977)

Abstracção hoje, Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1975

O desejo do desenho, Casa da Cerca - Câmara Municipal de Almada, Câmara Municipal de Almada, Almada, 1995

Sinfonia em branco: pintura, escultura, fotografia, Convento dos Capuchos, Almada, 1986


---------------

ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS:


Julião Sarmento

Artista

(excertos da entrevista realizada em Agosto 2009)

 

(...) Mas vocês tinham já a noção do que é que era ser Artista nessa altura? Tinham a percepção do que é que isso implicava? E digo não só no contexto português ...

R: ... tínhamos ... o Calhau muito mais do que eu porque o pai do Calhau já vinha dessa área.

(...) O pai do Calhau era designer ... o que se chamava graphic designer na altura. Era uma pessoa que fazia design de embalagens, de capas de livros, e portanto tinha um mundo muito mais virado para essas coisas e meteu o Calhau nesse mundo.

Para ele então foi natural ter embarcado nesta área ...

R: sim, sim. O Calhau ensinou-me muitas coisas, abriu-me os olhos para muitas coisas que eu desconhecia (e por isso é que eu fiquei fascinado com ele). No fundo, foi o pai do Calhau (que eu ainda conheci) que lhe mostrou que existia a Arte Americana (porque tinhas as revistas de design e de vez em quando apareciam umas coisas do Andy Warhol e nós aí começámos a juntar dois e dois, e começámos a ir à Embaixada Americana, que naquela altura tinha uma biblioteca onde se podia consultar o Newsweek, a Time, a Art in America e a Artforum). Portanto nós íamos à Embaixada Americana onde passávamos tardes a ver a Art in America e a Artforum, que mais ninguém em Portugal sabia que existia, porque obviamente ninguém ia à Embaixada Americana ler revistas. E às vezes, eles tinham uma espécie de sobras (quando estavam desactualizadas eram retiradas e oferecidas).

Ou seja, começaram a criar ali um arquivo gigantesco de informação visual ...

R: ... exactamente, que mais ninguém tinha. Isto é, que era acessível mas muito parcamente acessível. Isto resumindo e concluindo, no fundo, devemos tudo ao pai do Calhau (que nem sequer era artista, era designer, mas tinha uma sensibilidade visual bastante diferente, muito diferente da do meu pai que trabalhava num escritório)

(...) O Julião diz que foi uma coisa natural de empatia, mas consegue definir mais ou menos o que é que tinham em comum, o que é que partilhavam, para além da vontade de quererem ser Artistas?

R: Era isso. Era essa vontade e eram os gostos. Gostávamos da mesma música, gostávamos das mesmas coisas, gostávamos dos mesmos livros, gostávamos de nos divertir da mesma maneira, gostávamos de mulheres. Percebe? Tínhamos esta coisa de copain, copain. Falávamos uma linguagem que, curiosamente, não era acessível aos outros. Não lhe consigo explicar de uma maneira mais objectiva. É uma coisa que ainda existe, hoje em dia, nas relações entre as pessoas. Tínhamos os mesmos referentes, ao fim e ao cabo.

... e neste caso, ainda por cima, reforçado pelo facto de os referentes terem, em grande medida, sido construídos juntos e partilhados no exacto momento. A cumplicidade é, portanto, maior, não é?

R: Muito maior, nesse sentido, tal e qual.

E nessa altura o Calhau, quando eu o conheci no primeiro ano das Belas Artes, já andava há um ano na Gravura. Portanto o Calhau era gravador, ele começou por ser gravador e já andava há um ano a fazer e a estudar gravura. E quando ele me mostrou ... (eu não sabia que existiam gravuras, naquela altura) ... ele levou-me para lá e comecei a trabalhar com ele.

(…) R: O Calhau ... era bom. Há pessoas que você topa que são maus e há outros que você não tem dúvida. Está dois minutos a conversar com ele e diz: “Este gajo é bom”. Pronto. E o Calhau tinha essa ... aura. Percebia-se logo que era um tipo bom.

Mas ao mesmo tempo era bom no sentido do (e isso é que é curioso, e isso as pessoas que não o conheceram não percebem) do Fernando Pessoa, porque tinha um lado escriturário. O Calhau gostava de andar sempre de fato e gravata ... pintava de gravata, percebe? Podia fazer aquelas coisas mais obscenas de gravata, com aquele arzinho, fazia tudo impecável. O Calhau tinha sempre os vincos das calças impecáveis, o Calhau passava os jeans a ferro, não tinha um grão de pó, não tinha uma nódoa, era maníaco com essas coisas, era mesmo completamente maníaco.

Sim, mas mesmo já na Gravura, nessa altura, ainda nessas gravuras da primeira exposição já se nota muito isso, não é? São de uma proficiência e de um rigor enorme. São gravura (resultantes de um processo inteiramente manual) mas com um rigor de acabamento e com um aspecto final quase industrial.

R: Sim, sim. Mas o Calhau tinha esta coisa muito curiosa ... é que ele era um poço de contradições, porque, em princípio, quem é assim não tem graça nenhuma, só que ele tinha. Por isso é que havia esta dicotomia estranhíssima nele. Porque tinha aquela paciência de chinês. Era capaz de estar quinze dias a pintar um metro quadrado e, poder-se-ia pensar: “Eh pá um gajo que está quinze dias a pintar isto de preto é um chato!” mas ele não era um chato. Essa contradição é que era curiosa no Calhau.

(…) Para além da qualidade intrínseca do trabalho dele, à época, ... não deixa de ser estranha tanta receptividade.

R: É que o trabalho dele era tão diferente de tudo e tão obviamente bom ...

... já nessa altura ...

R: ... já nessa altura. Sempre foi! É horrível dizer isto e é muito difícil perceber isto (principalmente fora do tempo) mas tudo o que ele fazia era mesmo bom. O Calhau era uma espécie de Bruce Nauman, tudo o que fazia era bom. Ele não fazia uma coisa má.

(…) O Calhau era experimentalista. Extremamente experimentalista na maneira de fazer, ou seja, na maneira de lá chegar.

O processo artístico (o seu, o meu, o de todos nós) é o nosso discurso e a maneira de conseguirmos fazer qualquer coisa. Há artistas que são mais processuais – o que lhes interessa é o processo – a outros o que interessa é muito mais o resultado final. Ao Calhau interessava muito este processo (onde experimentava e era super avançado) mas ele sabia perfeitamente o resultado a que queria chegar, que era sempre o mesmo. O Calhau era o típico artista que pintava sempre o mesmo quadro ...

(…) E o que é que acha que ele queria dizer com o: “funciona e não funciona”? Para si também é assim?

R: Era muito intuitivo. Há um lado muito intuitivo. Para si também, de certo, Ana. E para toda a gente. Ao fim e ao cabo (disto é que nenhum artista se pode esquecer), isto são artes visuais, têm a ver com a percepção visual. As coisas podem estar todas certas mas pode não funcionar. Pronto ... e tem que funcionar. Tem a ver com aquelas coisas que não são explicáveis, nem são racionais. Olha-se e vê-se que funciona. O Calhau era muito greenberguiano nesse sentido.

(…) R: O Ernesto era o nosso mestre. Meu e do Calhau. Idolatrávamos o Ernesto.

Sendo vocês já tão atentos e informados, o que é que o Ernesto vos trouxe mais? Qual era o fascínio?

R: Nós continuávamos a ser únicos. Eu e o Calhau em Portugal não tínhamos nenhum interlocutor. Até que nesta altura encontrámos o primeiro interlocutor, que era o Ernesto. Que era mais velho, sabia mais do que nós e tinha mais prática. Ou seja, era uma espécie de nosso pai. Falava a mesma linguagem que nós. Nós dizíamos “mata” e ele dizia “esfola”, tinha as mesmas referências que nós ...

... para além de que tinha uma energia fora do normal e era muito entusiasta, portanto ...

R. ... era, era super-entusiasta. Você falava com o Ernesto durante cinco minutos e carregava as pilhas para uma semana. Era extremamente estimulante, era super-entusiasta e para nós era ouro sobre azul, percebe?

(…) E acha que é um trabalho que (se ele o tivesse querido fazer) poderia ter sido internacionalizável?

R: Completamente. Aliás uma das coisas em que às vezes penso é: se um dia eu agarrasse num destes críticos hot (tipo Jens Hoffman) e o pusesse a fazer uma exposição do Calhau, por exemplo, na Serpentine, não tenho dúvidas de que ia ser um sucesso brutal.

(…) E o que é que acha que ele poderia ainda ter feito e acabou por não conseguir fazer a esse nível?

R: Não sei. Sei que, e isto para mim é muito claro, o Calhau sabia perfeitamente que ia morrer e como era muito racional (conversámos várias vezes sobre isto aliás) teve de concentrar em pouco tempo tudo aquilo que queria fazer e que sabia agora que não ia ter tempo para fazer. Se reparar, nos últimos meses de vida do Calhau, o trabalho dele evoluiu com muito mais rapidez do que alguma vez até ali. De tal forma ele era programático que acelerou quando teve, de facto, que acelerar. Ele sabia que queria chegar a um determinado lugar e portanto começou a concentrar e a condensar os sistemas ... e entretanto morreu.

(…) Sobre esta parte é que eu não consegui encontrar muita informação: O Julião entretanto sai da Secretaria de Estado (ao fim de dez anos), e o Calhau continuou e seguiu a sua carreira institucional até ao fim, quase até morrer. Não consegui encontrar grande informação sobre a evolução da carreira institucional dele, até ao momento em que volto a ouvir falar dele na fundação do IAC (um projecto que lhe é totalmente atribuído e que todos afirmam ser o resultado de uma vontade e obstinação dele). Mas desde este início (1975) até esta altura (1996/ 1997) não há muita informação sobre o percurso institucional dele.

R: Então, era um funcionário público. Era o chefe da Divisão de Artes Plásticas, era este o cargo dele. A Direcção Geral de Acção Cultural tinha várias Divisões: Divisão de Cinema, de Teatro, de Literatura, de Artes Plásticas, e ele era o Chefe dessa Divisão.

Ou seja, tinha um cargo de decisão já ...

R: Era uma espécie de mini-IAC. Sim decidia, ou melhor, propunha e recomendava. Dava o seu parecer. Tinha que reportar ao Director de Acção Cultural (acima dele) que depois reportava ao Secretário de Estado.

(...) R: Sim, o IAC é um projecto completamente dele. Inventado e pensado desde o início pelo Calhau.

E para responder a quê?

R: O Calhau era socialmente muito preocupado.

Tinha um sentido de dever público é isso?

R: sim, tinha um sentido de dever público e sentia a necessidade e a falta de instituições e de museus para a Arte Contemporânea e a necessidade de se apoiarem os jovens artistas. Preocupava-se com isto mesmo de uma forma altruísta. Ele achava que o Estado não tinha uma forma de ajudar os artistas, e a ideia dele era fazer com que isso pudesse ser mais ou menos possível.

Um dos motivos para a criação do IAC era, para além da plataforma de apoio à Arte Contemporânea, a tentativa de agilizar os processos através de uma estrutura mais leve.

R. Pois, pois, porque antes do IAC o que acontecia era que, para além de não haver tantos meios nem tão directos, quando você queria fazer uma exposição, pedia um apoio, justificava e esperava três meses (que era o tempo de dar a volta à Secretaria de Estado) até poder ter uma resposta. Ele, de facto, agilizou a coisa de uma maneira incrível.

(…) A dada altura na vida do Calhau aparece a Modus Operandi, que era um projecto do Calhau, do Delfim e da Margarida Veiga. Como é que estas três pessoas se aproximaram e se juntaram naquele contexto?

R: A Margarida Veiga estava na Secretaria de Estado da Cultura, lá conheceu o Calhau. Eram muito amigos e andavam sempre juntos. E depois apareceu o Delfim que também foi para lá trabalhar e a páginas tantas tiveram a ideia de montar a empresa. Como estavam lá a trabalhar perceberam que em Portugal não havia ninguém especializado em produção para Arte. E então decidiram montar a empresa.

Mas fizeram muito poucos projectos.

R: Muito poucos. O “Cerco” e poucos mais, porque entretanto se desentenderam. A Margarida e o Calhau saíram e na empresa ficou só o Delfim.

(...) Então agora aqui ainda a propósito deste lado institucional, o Julião acha possível o conciliar destes dois lados (provavelmente vai-me dizer que não, dada a sua experiência) ... o conciliar do trabalho artístico com o trabalho institucional?

R: Eu conciliei durante 10 anos, até conseguir. A páginas tantas já não aguentava mais e por isso mesmo é que desisti. Cheguei à questão: “ou sou artista ou sou funcionário público”.

Mas durante esse tempo tinha a noção de que era prejudicial, de que era uma pedra no sapato, de que era uma chatice?

R: Completamente. Ocupava tempo, não me deixava ...

Mas o Calhau parece nunca ter pensado dessa maneira ... ele parece que gostava destes dois universos. E, no caso dele, era conciliável?

R: Sim, sim, o Calhau até dizia a brincar que era um pintor de fim-de-semana, de domingo. Ele tinha muito de Mondrian, nesse sentido.

Era então disciplinado?

R: Super disciplinado.

E considera que o facto de ele ter estado tanto tempo ligado a esse lado institucional (de que ele gostava) foi uma coisa que lhe tirou visibilidade?

R: Ele não queria ter visibilidade.

Não? É curioso porque intuí precisamente isso nas pesquisas que fiz, mas sem certezas.

R: O Calhau gostava de produzir para dois ou três amigos verem (entre os quais estava incluído eu e sinto-me muito honrado por isso), para ele ver, para a Cândida ver, para o Ernesto de Sousa ver.

Ou seja, considera que não o angustiava nada o facto de não ter tido uma carreira explosiva.

R: Nada. Nunca quis. Foi uma opção.

(...) R: Ana, estamos num território muito pantanoso, que é o território daquilo que é e daquilo que parece. A única coisa que eu lhe posso dizer é que por todas as atitudes do Calhau, por tudo aquilo que ele disse, por tudo aquilo que ele fez, por tudo aquilo que ele afirmou a nível pessoal e íntimo comigo, ele estava-se nas tintas. O gajo queria ser artista porque gostava de ser artista mas estava-se nas tintas para o lado exterior de se ser artista. Queria ser artista para três ou quatro pessoas e para ele próprio. Isto é o que ele sempre afirmou e eu sempre o conheci assim, agora, seria verdade? Eu não sei. No fundo, eu não sei.

É estranho, ao mesmo tempo, porque há um lado de obstinação na personalidade dele o que me leva a achar que se, de facto, ele quisesse ter tido outra carreira teria com certeza conseguido tê-la. Teria feito um esforço nesse sentido, teria recorrido a inúmeros recursos que inclusivamente foi adquirindo na sua vida institucional e que aliados ao seu lado palaciano lhe trariam frutos. Não crê?

R: Sim, sim. Eu estou convencido que ele não queria mesmo. Mas ao mesmo tempo,  What a waste!!! Percebe? Eu penso (e que fique aqui gravado): eu acho que o Calhau é o maior artista português de todos os tempos. Digo-lhe mesmo isto e muito honestamente. Acho que é, seguramente. Não houve nenhum outro que se lhe aproximasse.

Tudo isto parece também muito fruto da sua personalidade discreta.

R: Sim, o Calhau era muito discreto e se calhar não estava mesmo nada interessado no sucesso vertiginoso. Era um tipo adorável. Não tinha mau feitio. Era uma pessoa maravilhosa. Super querido, muito carinhoso, muito, muito afectivo. What a waste!

Ainda por cima, depois da morte dele (que se poderia dar a volta a isso tudo), tornou-se impossível com a doação do espólio à Gulbenkian. Retirou-se tudo aquilo que havia e que poderia circular em termos de mercado (que é a coisa mais importante para que um artista se mantenha vivo, que é a obra do artista poder circular), e foi tudo entregue à Gulbenkian.


---

Delfim Sardo

Curador

(excertos da entrevista realizada em Setembro 2009)


(...) A primeira exposição que eu vi do Calhau foi em 1981/82 em Coimbra. No Círculo de Artes Plásticas.

E nessa altura que percepção teve sobre aquilo que viu? Ficou interessado?

R: Sim fiquei interessado. Nessa altura a minha cultura artística era muito primária. Tinha 18 anos, o 25 de Abril tinha sido há muito pouco tempo, a informação circulante era muito pouca e eu estava a dar os meus primeiros passos no interesse pelas artes … portanto é natural que tenha ficado interessado. Quando conheci o Calhau pessoalmente conhecia as pinturas verdes, conhecia alguma pintura monocromática da década de oitenta, pouco mais, mas tinha interesse pela obra dele.

(...) R: O Calhau reúne a unanimidade de pessoas tão díspares, na altura, em lados tão opostos da barreira, como o Ernesto de Sousa e o José Augusto França, o Rui Mário Gonçalves, o Fernando Pernes, o próprio Fernando Azevedo. Todos eles tinham um apreço enorme pela obra do Calhau, curiosamente. Porquê? Porque provavelmente a obra do Calhau reunia características que agradavam a ambos, por motivos diversos. Eu acho que ao José Augusto França ou ao Rui Mário Gonçalves agradava sobretudo o rigor e a qualidade pictórica e que ao Ernesto de Sousa agradava sobretudo a capacidade de risco e a contemporaneidade que ele tinha e onde se situava no contexto internacional. E portanto, cada um deles era fascinado por zonas diferentes do trabalho.

(…) E tem ideia se esta persistência e esta espécie de obsessão já muito presente nestes trabalhos desta fase inicial, se era uma coisa já programática, ou seja, ele já tinha consciência de onde queria chegar, do que é que aquilo ia dar?

R: Não, não acho que tenha sido programático. Não tenho ideia, embora eu não o conhecesse nessa altura, mas não tenho ideia de que fosse, na altura, uma coisa programática. Eu acho que na altura surge como uma vontade que ele tinha de se aproximar de algumas referências internacionais que ele tinha (sobretudo Pop) e portanto esse lado de não manualidade que a Pop introduz durante os anos 50 ... ele disso tinha consciência, mas não creio que correspondesse a um eixo programático que nos permita dizer que estaria ali a nascer um interesse conceptual ... eu acho que no início não. Depois sim, vai-se aproximando das suas referências mais do universo do minimal e do conceptual que lhe interessam também sempre nessa tipologia.

E é curioso porque o Calhau teve uma actividade muito intensa como fazedor de Colecções de Arte, comprou para a Caixa Geral de Depósitos, comprou para as Colecções do Estado, etc. Nas compras do Calhau é muito curioso porque há compras em que ele vai à procura exactamente de uma expressividade de mão que ele não tinha no trabalho dele e que recusava, o que não é comum.

Mas acha que esse interesse residia num interesse particular dele, de facto, como espectador ou acha que era uma espécie de sentido de responsabilidade, do tipo: “Estou a adquirir para uma colecção pública, com dinheiro público e portanto tenho de ser ambivalente”?

R: Não, não acho. Eu acho que ele tinha a sua quota parte de sentido de responsabilidade nas escolhas, aliás ele até dizia que uma colecção deve ter uma quota parte de 10 a 15 % de disparate, que era aquilo que eram as concessões possíveis para garantir a abrangência de uma colecção. Eu acho é que ele tinha uma boa capacidade, aliás uma capacidade fantástica de olhar. Ele sabia reconhecer a qualidade mesmo naquilo que não pertencia à sua família estética e isso não é comum, sobretudo nos artistas, não é comum. Mas ele tinha essa disponibilidade enorme para olhar. Olhava muito bem. Eu nunca conheci nenhum artista, nenhuma pessoa aliás, ninguém com uma tal capacidade de olhar, de juízo crítico imediato intuitivo (e este juízo intuitivo não queria dizer que ele não cuidasse dele, ele cuidava dele). Ele olhava com muita atenção, era uma pessoa muito atenta ... nunca conheci ninguém assim ... era de entrar numa sala de exposição e dizer: “Aquele e aquele são bons ... o resto não interessa” e em minha opinião ele raramente se enganava.

(...) Há uma coisa que me inquieta que é a falta de visibilidade que o trabalho dele, ou que o percurso dele, revela sobretudo a partir de um determinado período. Deve-se obviamente ao facto de ele não poder trabalhar com tanta persistência ou assiduidade (quando digo trabalhar refiro-me a trabalhar para mostrar, para expor, porque provavelmente ele trabalharia todos os dias ... nos desenhos pequeninos, nas séries de pinturas de pequeno formato, nos ensaios)

R: Ele não trabalhava sempre diariamente. Nem em todos os períodos isso aconteceu. Eu acho que quando ele fazia esses desenhos foi mesmo para se forçar a trabalhar diariamente. Ele tinha uma regra que era nunca trabalhava ao Domingo, nunca pintava ao Domingo e dizia: “Eu não sou pintor de Domingo!”.

Curioso. Era um statement, claro.

R: Suponho que depois de ter deixado a SEC já podia pintar ao Domingo se lhe apetecesse. Mas enquanto esteve na SEC não pintava ao Domingo, era uma regra.

Pois, a falta de visibilidade do trabalho dele eu acho que tem a ver com dois aspectos: Tem a ver com os lugares institucionais por onde ele passou e que, de facto, o fizeram tomar opções; tem a ver com a timidez dele, timidez relacional dele, tem a ver com alguma insegurança que ele tinha sempre em relação ao seu trabalho (porque ele era uma pessoa insegura, que manifestava inseguranças em relação ao seu trabalho), e tem a ver também com o facto de ele ter passado longos períodos com a produção muito curta, muito escassa. Durante a década de 80 ele tem períodos de enorme interrupção criativa.

(…) Pois a minha questão era que é óbvio, achei eu, que uma carreira institucional levada a sério como ele, aparentemente, levou até ao fim, não lhe deixaria disponibilidade mental nem tempo para poder produzir com regularidade mas também, de alguma forma, achei estranho que tendo ele acesso privilegiado a contactos, a curadores ... achei que poderia haver aqui algum não querer, algum não assumir.

R: Sim, eu acho que ele tinha a preocupação em não misturar as duas coisas. (...) Mas realmente o lado institucional tolheu-lhe ... porque ele tinha muita dificuldade em misturar os dois aspectos (o que é lógico e é saudável). Agora, também é uma verdade que esse lado de acesso a contactos com curadores era importante, mas não acho que o lado institucional dele, pelo menos até à criação do Instituto de Arte Contemporânea, lhe desse acesso assim a grande contacto com curadores. Era uma coisa muito localizada.

(...) Essa exposição (“Work in Progress”, 2001) é o primeiro momento em que um público mais abrangente tem acesso ao corpo de trabalho do Calhau ...

R: É, é a primeira exposição antológica que ele fez.

Sim porque a ideia que eu tenho é que as exposições individuais do Calhau (para trás) foram coisas pontuais que foram vistas por grupos reduzidos de amigos ... aliás o Julião diz que ele queria ser artista para ele e para os amigos, não queria nem estava nada interessado em projectar-se para além disso.

R: Eu acho que ele para o fim da vida tinha. Para o fim da vida ele lamentava isso. Mas é verdade, ele sempre se rotulou a si mesmo como uma espécie de artista de artistas. Os artistas conheciam a obra do Calhau e respeitavam a obra do Calhau, mas ele não tinha ambição, achava que o que ele fazia para o público era chato, eram coisas pretas e monocromáticas e que ninguém ligava àquilo. Ele tinha sempre esse peso em cima de si.

(...) Quando a Cândida ofereceu as peças à Gulbenkian verificou-se que era uma doação de 500 peças.

Pois, é um espólio gigante.

R: É um espólio gigante. Claro que nessas 500 peças estão anotações, desenhos, coisas menores que nem são obra, mas de qualquer forma é um espólio enorme que ele tinha com ele.

Pois essa doação, segundo o Julião, impossibilitou e impossibilitará para o futuro que a obra dele seja uma coisa viva.

R: Essa doação foi uma asneira enorme, concordo inteiramente com o Julião, foi uma asneira enorme porque não há nenhuma instituição (sobretudo uma instituição como a Gulbenkian) que possa assumir aquele espólio e dar-lhe o relevo que um espólio dessa dimensão merece. Para isso teria de ter uma zona de Calhau em instalação permanente, teria de agarrar no Calhau e propor a uma série de instituições internacionais uma exposição do Calhau, investir nisso, fazer circular. O que eu acho é que neste momento, para a tipologia de obra do Calhau, é o momento maduro para o fazer porque há finalmente uma enorme curiosidade em relação a estas produções próximas do conceptual e do minimal, fora dos grandes eixos. E tentando encontrar o que é que há aqui de realmente relevante no contexto geral deste universo entre o conceptual e o minimal. O levantamento começou a ser feito nos países do leste da Europa, atravessou os modernismos africanos e nós temos os Calhau. Eu acho que neste momento era o momento para o fazer, mas só o pode fazer a Gulbenkian. A questão é que ninguém mais o pode fazer.

(...) Acho que o que valia a pena era começar a tentar levar o Calhau para Espanha. Acho que não era difícil convencer o Bartomeu Marí dizendo-lhe assim: “Descobre um artista português que ninguém conhece ... tens aqui uma oportunidade extraordinária.”. Ou fazer um protocolo com um bom Museu espanhol. Começar por aí. Não é difícil fazer a ponte com França, não era difícil fazer a ponte para Inglaterra (não evidentemente a Tate porque a Tate não vai apostar num artista como o Fernando Calhau ... não está nesse campeonato, está noutro, mas talvez a Tate Liverpool). E essas circulações começava a fazer-se sentido e a mostrar um corpo de uma obra. Quer dizer, um Museu como Serralves, se o Calhau fosse uma artista estrangeiro, podia ter feito uma exposição do Calhau como fez de uma série de outros.

(...) Mas o que é que acha que a ele lhe faltou fazer? Uma vez que me disse à bocadinho que ele no fim da vida tinha uma certa amargura ou uma certa angústia por não ter tido a visibilidade e por não ter tido o percurso internacional.

R: Tinha, tinha. E a maneira como ele retomou o trabalho quando deixou o IAC é muito reveladora disso. Quando sentiu que a vida se estava a escoar, ele reformou-se e começou desesperadamente a trabalhar e trabalhava afincadamente no percurso artístico dele. Quer dizer, o que lhe faltou, na realidade, foi ter uma carreira artística que ele nunca teve.

Era um pintor de domingo, apesar de não pintar aos domingos.

R: Era um pintor de semana. Faltou-lhe ter uma carreira artística, de facto. Que ele teve no princípio mas depois a SEC, o trabalho, mataram-lhe essa possibilidade. O Julião acusava-o sistematicamente, e com razão, de em 1986 (quando o Julião tinha dado o seu grito do Ipiranga e tinha saído com as suas dificuldades, naturalmente. Ele quando resolveu tomar essa decisão foi um tiro no escuro, ele não sabia o que é que o futuro lhe reservava mas acreditou, e acreditou muito bem, fez muito bem). E o Calhau não teve essa coragem e nunca assumia isso. Dizia sempre: “Não, eu também gosto da actividade da organização de exposições”, mas o Calhau organizou muito poucas exposições na sua vida. O Calhau organizou muito poucas exposições ao longo do seu percurso. A maior parte foram institucionais e não lhe davam satisfação.

(...) Ok, pronto. Quer falar sobre alguma coisa que eu não tenha perguntado e que ache que seja relevante?

R: Sobre o Calhau? Não, acho que não. Acho que não. (...) Eu tenho sempre essa sensação de que eu aprendi a ver Arte com o Calhau, claramente.

Tendo em conta aquilo que me disse inicialmente de que ele tinha esta espécie de dom natural.

R: Havia um dom. Havia um lado de acuidade visual e de atenção natural, mas isso era uma coisa muito treinada também.

Claro, percebe-se que seja assim.

R: Havia um jogo que o Calhau fazia sempre, aliás fazíamos sistematicamente isto. Antes de entrarmos numa exposição dizíamos assim: “Escolhemos duas obras, tu escolhes duas e eu escolho duas.”.

Em função de? Obras que vos interessassem?

R: As melhores! Não havia meias tintas. Com ele não era bom para isto ou interessa-me porque ... não, as melhores! As melhores é um critério que não tem discussão, não é? São as melhores! E então, dávamos uma volta e quando nos encontrávamos outra vez à porta: “Então?” e checkávamos sempre.

“As minhas são estas e as tuas ...”. E coincidiam frequentemente?

R: Muitas vezes coincidiam.


---

Luís Serpa

Galerista, Programador

(excertos da entrevista realizada em Outubro 2009)


(...) R: Eu conheci o Fernando Calhau na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, no curso de Pintura, ao mesmo tempo que conheci também o Julião Sarmento. Entrámos os três no mesmo ano; aliás nascemos os três no mesmo ano, em 1948. E lembro-me que o Fernando trazia já atrás de si algumas exposições individuais, o que fazia de nós uns meros noviços na matéria e ele já vinha como O ARTISTA, e não como o aprendiz de artista.

(...) Dei-me com o Fernando desde essa altura e, principalmente, depois de abrir a Galeria (1984) ou quando iniciei o “Depois do Modernismo” (1983) ele era já funcionário da Secretaria de Estado da Cultura; depois foi Chefe de Divisão e estabelecemos uma relação, digamos, de Galeria e Instituição.

Claro que ele deveria fazer parte, desde logo, do grupo de artistas que a Galeria representaria. Lembro-me que não esteve na primeira escolha de artistas do “Depois do Modernismo” e que eu tentei recuperá-lo (o comissário da parte das Artes Visuais era o Leonel Moura) e concordámos em convidá-lo; mas ele achou por bem não ser incluído. Também porque ele não se classificava muito bem nestas ideias sobre o pós-modernismo.

E, a partir do momento em que abri a Galeria, ele foi um dos primeiros a fazer uma exposição, prosseguindo sempre a trabalharmos regularmente juntos. Lembro-me que o Fernando, contrariamente aos outros artistas, não era um artista muito disponível para se encontrar com os curators, com os galeristas, com críticos de arte que passavam por Portugal. Oscilava muito entre o low profile, pelo facto de ter um posto institucional e, por outro, por ser artista. Eu tenho pena ...

Mas acha que era mesmo essa a razão?

R: Não, não era só isso. Ele tinha de facto um low profile, tinha a sua profissão no Estado e, também, porque era tímido, achava que não devia participar muito nestes encontros em Portugal por onde passavam os opinion makers e isso pesou sobre a sua carreira internacional porque nas Feiras de Arte em que o apresentei houve muito interesse sobre o seu trabalho.

Mas acha que ele tinha, em relação ao seu trabalho, uma noção de que aquilo era, de facto, importante e pertinente e tinha que ser visto para além das fronteiras de Portugal?

R: Acho que isso era a ambição de qualquer artista português. Aliás, a raison d’être da Galeria era divulgar e promover os artistas portugueses internacionalmente. Isso é que foi a razão de existir da Galeria e como estratégia para que isso pudesse acontecer, assumi a internacionalização convidando artistas estrangeiros para vir expôr a Portugal (desde o Mapplethorpe, ao José Maria Sicília, à Cindy Sherman, Joseph Kosuth, Michelangelo Pistoletto, Gilberto Zorio, Gerhard Merz, John Coplans, entre tantos outros), porque era uma Galeria que demonstrou essa capacidade e granjeou rapidamente credibilidade internacional o que lhe proporcionou  poder expôr esses artistas. Obviamente que os artistas portugueses que trabalhavam com a Galeria saíram, de algum modo, beneficiados e, nas Feiras, o facto de ter, no mesmo stand, esses artistas estrangeiros a par de um Calhau, um Sarmento, um Molder, um Cabrita Reis, um Calapez, dava alguma credibilidade aos seus trabalhos. A Galeria passou a ser uma espécie de interface e de filtragem no acesso á legitimação internacional. (...) E, de facto, foi possível fazê-lo porque estava em Lisboa, porque se estivesse em Nova Iorque ou em Londres provavelmente não teria sido possível (estar na periferia ajudou)... mas criámos um novo circuito e entrámos nesse circuito muito bem.

(...) Também o facto dele ter pertencido aos júris das Bienais como representante da SEC ou estar nas Comissões de Compras para as Colecções da Caixa Geral, do Estado e acho que também de Serralves... isso criou-lhe um problema complicado de relacionamento com outros artistas e essa foi a razão aliás porque no final até deixei de trabalhar com ele. Tornou-se incompatível para mim. A Galeria tinha uma vocação internacional e ficava manietada e impossibilitada de trabalhar com os artistas que no fundo tinham acedido a trabalhar no Estado ou noutras Instituições: era o caso do Fernando Calhau, o caso do Jorge Molder, o caso do Rui Sanches. O Julião Sarmento optou desde logo por abandonar a SEC e aproveitar esta nova janela de oportunidade. Essa situação criou um problema de compatibilidade sendo a Galeria prejudicada por isso, o que levou a que, em ‘94, acabasse com a representação dos artistas e mudasse o nome de Cómicos para Luís Serpa começando um novo projecto, um novo período da Galeria.

(...) Acha que era possível recuperá-lo internacionalmente neste momento?

R: Repare, há duas maneiras de recuperar um artista: um é ao nível do mercado privado, (as obras têm que circular); e, outro, é ao nível institucional (as obras tem que ser expostas). Como a maior parte das obras do Fernando Calhau ficaram na esfera das instituições, falta a faceta do mercado privado. O mercado privado cauciona e o mercado institucional legitima. Na minha opinião, a gestão da obra do Fernando Calhau foi mal gerida dado que, logo de início, queimaram-se etapas que eram importantes para que o trabalho dele fosse circulando, tendo visibilidade progressiva, entrando nos diversos circuitos. Assim não, ficou numa espécie de Gruta de Alibabá ...

... de Cápsula ...

R: Ficou precisamente encapsulado, gerido institucionalmente (nem sequer os herdeiros ou pessoas que poderiam ter ficado com o Estate do artista podem usar estratégias de afirmação). E, ao nível do mercado, o Fernando Calhau praticamente desapareceu ...

(...) O facto de uma instituição, como a Gulbenkian, ter um espólio significativo (tem alguns, faltam-lhe outros) e, para assegurar que seja a Gulbenkian a fazer a sua melhor gestão, então terá mesmo que ir ao mercado e comprar porque há coisas importantes que faltam no espólio (eu tenho peças muito significativas); mas cabe-lhe então a responsabilidade, a partir de agora, de fazer a gestão criteriosa, estratégica de divulgação da sua obra. Se acharem para isso conveniente e se estiver nos objectivos da instituição (o que lhe traz uma responsabilidade acrescida); mas duvido que o queiram fazer ... o seu objectivo não é promover a reputação de um determinado artista.  Não compete a uma instituição fazer isso, isto é, pode legitimar isso mas não tem que o fazer como objectivo. Claro que os estudos teóricos e a possibilidade que se pode dar a académicos e a críticos  a possibilidade de estudar mais aprofundadamente a obra dele é uma função que eu penso que a Fundação Gulbenkian poderia ter ... proporcionar a jovens académicos debruçarem-se sobre o trabalho dele e pontualmente organizar iniciativas de contexto nas quais o Fernando Calhau esteja. Agora, fazer retrospectivas em que “queimem” todas as obras que têm, foi estrategicamente errado ... foram feitas em períodos muito próximos do falecimento dele e agora pode ficar na “prateleira-do-esquecimento” até que alguém um dia se lembre de o voltar a (re)contextualizar com obras de outros artistas e ao nível internacional.


---

Diogo Pimentão

Artista, ex-assistente de Fernando Calhau

(depoimento recolhido por email em Novembro 2009)

 

Só o Fernando Calhau para me fazer escrever quando a minha escrita é o desenho.

Trabalhei um ano e meio no atelier de quem tinha seis meses de vida para viver a sua obra: o tempo, a vida, o limite da matéria, o preto com todas as suas nuances... Uma obra grave de uma pessoa dotada de um humor feroz capaz de perturbar a sensibilidade dos mais pudicos.

Antes de ter sido seu assistente conheci-o enquanto director do Instituto das Artes.

Telefonei a marcar encontro no IAC para lhe pedir que me escrevesse uma carta e assim facilitar a emissão de um visto junto da embaixada dos Estados Unidos. A carta que me escreveu apenas informava que eu viajava enquanto assistente de Julião Sarmento para Nova York onde iria ajudar a preparar e montar uma exposiçao. Claro que com essa carta do IAC obtive o visto máximo, com o qual ainda viajei várias vezes depois do Fernando Calhau ter falecido. Pois, boa maneira de começar uma relaçao: em dívida, logo ali no primeiro encontro.

Aprendi, ao trabalhar para o Julião Sarmento (entre mil outras coisas), algo que achei particularmente curioso: a dar espaço ao acidente. Embora o trabalho fosse de extrema minúcia também era importante para o Julião que se desse espaço para deixar as coisas acontecer. E, sabendo isto, eu ou qualquer outro assistente que tivesse tido ou viesse a ter podia participar nesse acontecer, determinado pelo próprio trabalho.

Quando mais tarde vim a trabalhar para o Fernando Calhau a responsabilidade e premissas eram outras. Até gosto de pensar que nunca fui assistente dele porque não fazia parte da sua prática artística trabalhar com assistentes. Só quando adoeceu é que foi obrigado a recorrer a um (no entanto sabe-se que era óptimo gestor de equipa no IAC).

Ajudei-o quando não podia ser ele a fazer o que sempre fez sozinho. E para mim surgiu uma responsabilidade diferente e abriu-se um mundo novo.

Quem já viu fotografias do interior do atelier do Fernando Calhau não imagina que ao transpor a porta do atelier todo manchado de negro se pisava um chão de madeira encerado ladeado de corredores de branco imaculado, recheados de delicadas obras de colegas e amigos. O atelier era uma divisão da sua casa. Por vezes o trabalho mais delicado podia ser feito na sala, e chegámos a trabalhar na cozinha. Ainda hoje gosto de me lembrar das obras que se iam acumulando no corredor antes das exposições. Nunca foi necessário recorrer a outro espaço que o da sua casa. Era uma vivência muito próxima com a obra. Até havia uma porta do atelier (que nunca se abria) que dava para o quarto de dormir.

Sempre admirei, com alguma inveja, o Calhau entrar no atelier com a sua melhor camisa e umas belas calças para ir misturar tintas, trabalhar com aerógrafo e desenhar a carvão! E conseguia sair sem uma mancha de cinzento na roupa!

Um aspecto da obra do Fernando Calhau que diz bastante sobre ele é a fina película da sua pintura (mesmo em alguns desenhos). Um fina camada formada por inúmeras camadas de tinta polidas com lixa. Quase como uma revelação fotográfica que surpreendentemente tomava forma e nao se tocava mais.

O Calhau como pessoa era de uma grande simplicidade mas de geologia complexa. Com um ritmo de trabalho lento mas firme.

Que melhor imagem que a de um calhau? Uma pedra nem demasiado grande nem demasiado pequena mas firme. Solta de uma rocha, é formada por uma erosão despretenciosa. Peguem num calhau qualquer da rua e tentem sustentar que esse calhau nao tem uma história particular que o levou àquela quina quebrada ou ao arredondado de uma outra face. Há disforme mais enigmático que o de um calhau? Nao temos que ir a uma mina profunda nos confins do mundo para o ir buscar, basta sair à rua. Num calhau já todos demos um pontapé despreocupado e a muitos já ajudou a desencadear revoluções. Um calhau nao é apenas um seixo que nas mãos de outro faz belos saltos no lago para depois se afundar. Ser o calhau no meio de tantos é que está a dificuldade e o mérito, podemos imaginar a história de um calhau que queria ser pepita – é ridículo. Um calhau é uma pedra à solta.

E soltas também são as gravuras, os desenhos, as fotografias, os slides, as esculturas, os néones, as montagens, os super 8s, os vídeos, as acções... Tudo isto com uma unidade estonteante.

Desenhos a lápis e tinta de bomba de spray, outros a grafite feitos em casa sentado no sofá da sala, fendas, saídas ou entradas, originárias do mundo (como disse Leonard Cohen “there’s a crack in almost everything, that’s how the light gets in”). Ainda no atelier durante as pinturas negras a aerógrafo imaginamos a música de um minimalista americano mas não, ouvia-se invariavelmente Rock and Roll. Fotografias numa praia com um quadrado imaginário feito à mão pelo próprio artista, outras em processo de auto apagamento que ao desaparecerem completamente podem voltar a ser imprimidas para passarem pelo mesmo processo. Super 8s, um deles com ele, o “Destruição”. Esculturas em aço e neon a delinear, determinar e criar espaços: quem é que nao reparou no pavilhao branco, na exposição Um Passo No Escuro com o Rui Chafes, numa peça instalada no jardim (dois néones FORM e LIFE). Apesar de estarem fora eram as obras que mais presença tinham no interior, cada um na sua árvore, acabando por estar e não estar em lado nenhum...

Eu nunca sabia o que ia ajudar a fazer no dia seguinte. Era um autêntico work in progress. Se lhe perguntasse o que iríamos fazer no dia seguinte ele saberia? Acho que sim, não eramos assim tão próximos. Isso é o que hoje ainda me magoa, sentir que ainda tinha muito para ver e aprender ao lado dele.

Confessou, creio que a título de conselho a um jovem, que se soubesse ter tão pouco tempo de vida se teria dedicado ainda mais ao seu próprio trabalho artístico. Não sei se acredito que o fizesse, porque ele era um altruista. Sempre falou abertamente do seu estado de saude e até brincava com a situação.

Trabalhei para o Calhau num domingo, na segunda chorei a ida dele para o hospital e na terça ri-me por ele ter conseguido enganar a morte tanto tempo. Ele podia tê-la enganado mais mas, como o próprio Calhau diria, que piada é que isso tinha?