A colecção que Jorge de Brito constituiu ao longo da sua vida é um objecto de estudo incontornável para a historiografia da arte portuguesa mais recente e, muito provavelmente, a colecção privada portuguesa mais importante da segunda metade do século XX. É graças a ela que o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian consegue apresentar à data da sua inauguração, em 1983, um acervo capaz de fornecer uma via de entendimento para a arte portuguesa do século XX, e que, anos mais tarde, a Fundação Arpad-Szenes Vieira da Silva abre portas em Lisboa com um conjunto de obras de relevância inquestionável. Interessa-nos, no entanto, entender a colecção como um objecto cuja importância ultrapassa o estudo estrito do seu núcleo composto por pintura, sendo fundamental perceber o contributo de Jorge de Brito para o desenvolvimento do campo da arte português.
Com a revolução de 1974, vive tempos difíceis, chegando a ser preso. Conta mesmo, em entrevista à revista K, em 1992, que indicou o caminho de sua casa até à prisão de Peniche, local onde é preso durante 19 meses. Depois de ser liberto fixa-se em Paris, e regressa apenas no início dos anos 80. Tenta negociar as dívidas com o Estado e vai retomando os seus negócios, ao mesmo tempo que prepara a candidatura à Presidência do Sport Lisboa e Benfica. Entretanto, negoceia com a Fundação Calouste Gulbenkian parte da sua colecção de arte portuguesa, enquanto vende algumas obras de arte internacional para fazer face às dificuldades financeiras que experimenta. Apesar das vendas, detém ainda uma colecção de grande qualidade, nomeadamente de obras de Vieira da Silva, que deposita na Fundação Arpad-Szenes-Vieira da Silva, quando esta é constituída em 1994. Daí até ao ano da sua morte, em Lisboa, em 2006, continua a vender peças da colecção, ainda que salvaguardando a posse das obras que considera de melhor qualidade ou que pretende manter por razões afectivas.
Visita de Arpad Szenes e Vieira da Silva à casa de Cascais de Jorge Brito
João Teixeira, arquitecto, amigo e intermediário em alguns negócios ligados à colecção, nomeadamente com a Fundação Calouste Gulbenkian, conta-nos que se conheceram “no Algarve, nos finais dos anos 50. Ele ia para a Dona Ana, que era uma praia lindíssima, ao pé de Lagos. Tinha um carrito, um Karmann Ghia, e gostava muito de pesca submarina. Os meus tios convidaram-no duas ou três vezes para ir jantar lá em casa”. Poucos anos mais tarde voltam a encontrar-se e, segundo João Teixeira, por essa altura “ele jogava muito Bridge, sempre foi jogador. Encontrei-o no Grémio Literário onde ele me disse que sabia que eu tinha umas coisas do Keil... Na semana seguinte, comprou-me os quadros. Ele era um jogador muito inteligente, muito perspicaz, sem qualquer tipo de expressão, nunca se sabia quando estava chateado. Lá para o fim, já o conhecia, mas era difícil. Era muito inteligente, um visionário”.
A colecção que Jorge de Brito constituiu ao longo da sua vida é um objecto de estudo fundamental para a historiografia da arte portuguesa mais recente e que carece, como já apontado por Raquel Henriques da Silva, de um estudo aprofundado que possa “saber o que coleccionou, em que tempos, com que articulações, nomeadamente em relação à arte internacional. É preciso indagar o seu projecto para estabelecer as colecções do século XX numa Fundação aberta ao público”[1].
Responder às questões aqui levantadas é encarar, forçosamente, a falta de registos que, quando existem, encontram na história conturbada da colecção, do coleccionador e do país uma barreira praticamente intransponível. Efectivamente, a importância do conjunto de objectos agregados por Jorge Brito a partir de meados da década de 40 do século passado advém, precisamente, das debilidades que o campo da arte foi evidenciando ao longo da nossa história mais recente. Panorama que, aliás, o próprio Jorge Brito tentou alterar.
Para melhor situar a acção do coleccionador interessa, antes de mais, estabelecer o que se entende por “campo da arte”. Neste sentido, e aproveitando as reflexões de Pierre Bordieu[2], “campo da arte” define-se como um universo social passível de ser circunscrito que obedece a regras próprias, onde os eventos políticos, económicos ou sociais são traduzidos de um modo específico. A nossa ênfase, ao tratarmos uma colecção, não se pode colocar no papel do criador dentro deste sistema de relações, como na formulação de Bordieu, mas na subsequente aquisição dos trabalhos. Focar a análise que pretendemos desenvolver no momento de aquisição dos objectos artísticos, permite-nos abordar a debilidade do campo para lá da “sucessão de rupturas, de faltas de durée intergeracional e de eterno recomeço”[3] que marcou a produção plástica nacional desde, pelo menos, inícios do século XIX. Ainda assim, ao confrontarmo-nos com uma colecção não deixamos de registar um mesmo problema já identificado por João Carlos Brigola ao analisar o Gabinete de História Natural do Marquês de Abrantes: a associação da morte dos fundadores com a perda de sentido dos seus projectos. Por outro lado, ao falarmos de bens que têm uma tradução pecuniária, ainda que inconstante, não podemos deixar de associar as dificuldades da própria vida económica do reino e das repúblicas, às condições precárias que a constituição de colecções de vulto em solo nacional foram apresentando.
Com efeito, podemos traçar um paralelo entre a colecção de Jorge Brito e uma outra, reunida no último quartel do século XIX por Pedro Daupias. Em determinado sentido, ambas constituem um exemplo da inflexão que o próprio fenómeno do coleccionismo registou ao longo da sua história, afastando-se da prática de acumulação de objectos com o propósito de entesouramento. Obviamente, esta alteração corresponde à mudança epistemológica de fundo normalmente associada ao início da época Moderna.
Tanto a colecção de Daupias como a de Jorge Brito são iniciadas em momentos de expansão económica. A primeira, num dos poucos momentos de acalmia que o século XIX proporcionou ao país. A segunda corresponde a um dos períodos de maior crescimento económico do século XX. Por outro lado, tanto uma como outra registam um declínio em momentos mais conturbados dessa mesma vida económica. A de Daupias desfaz-se por completo por dificuldades de tesouraria depois de um longo processo de partilhas associado à forte crise que Portugal conheceu por volta de 1890, culminando no suicídio de Pedro Daupias já depois de ter entregue o controlo da sua fábrica a um gestor. Jorge Brito, abalado pela revolução de 1974 e pelo “Caso BIP”, vê-se obrigado a negociar parte da sua colecção ao longo dos quarenta anos seguintes, mas sem a desfazer por completo.
Retomando o argumento de Bordieu, o campo da arte é um universo de crença. Isto é, o que pode distinguir a produção cultural de todas as outras é que não só materializa o objecto, como também determina o seu valor pela legitimidade artística que lhe confere. Ora, esta legitimidade depende também da forma como a arte se relaciona com o poder político ou económico. Não se considerando esta a única relação possível, é a capacidade de actuação de outros agentes que não os produtores, nomeadamente na aquisição, que define também o valor dos objectos.
Jorge Brito na cerimónia de doação do retrato de Fernando Pessoa à Câmara Municipal de Lisboa
É precisamente neste ponto que a colecção de Jorge Brito assume uma importância vital para a arte portuguesa que a colecção de Pedro Daupias não pôde ostentar. Com isto não se pretende desvalorizar a colecção do industrial oitocentista, o que é em todo o caso impossível se pensarmos que foi capaz da trazer para solo nacional pinturas de Corot, Courbet, Delacroix, Millet, Daubigny ou Rousseau. Reforça-se, isso sim, a actuação sobre o tempo e a realidade portuguesa que Jorge Brito conseguiu através das suas aquisições, nomeadamente ao fazer subir o preço da pintura. A colecção de Jorge Brito, fruto de um capitalismo financeiro que se afirmava no país, compunha-se principalmente de pintura nacional produzida a partir do final do século XIX, embora contasse também com representantes de vulto da pintura mundial e outros conjuntos de objectos.
A colecção e a criação do mercado da arte português
Como caracterizar esta colecção? Era constituída por seis núcleos: mobiliário, porcelanas, pratas, livros, moedas e pintura. Os primeiros cinco resultam mais directamente de uma aprendizagem que desde cedo a actividade do pai enquanto avaliador lhe proporcionou, contactando com quase todos os antiquários da época. Em certa medida, a escolha destes objectos corresponde mais a um gosto pessoal do que a uma programação como no caso da pintura, embora mantendo uma linha de actuação idêntica. Interessavam-lhe, sobretudo, objectos únicos, de grande qualidade, preferindo os que tivessem alguma ligação a Portugal. Chega a bater-se em leilão com enviados de Hong Kong por uma porcelana Ming, acabando por comprá-la. Assim, a sua colecção, exceptuando a pintura, compunha-se, essencialmente, de loiças chinesas, pratas portuguesas, uma biblioteca vasta que enriqueceu com a compra da biblioteca do Comandante Vilhena e um grande conjunto de moedas de ouro e mobiliário.
É na pintura que a actuação de Jorge Brito se revela de forma mais programática. Este núcleo contava com mais de 3000 peças, incluindo desenho, e aqui identificam-se quatro vectores: pintura barroca, a secção menos numerosa e porventura menos representativa do núcleo; pintura naturalista portuguesa; pintura modernista portuguesa[4] e pintura internacional.
Jorge Brito começa, desde cedo, a comprar. Segundo João Teixeira, “gostava intrinsecamente das coisas. Ele era baixinho, mas tinha uma cama de dois metros por dois. Mesmo já de madrugada, pedia-me para lhe levar as peças que tinha comprado e pô-las na cama, para ele ver. Por exemplo, aquelas bonecas do Viana, encostou-as a uma almofada porque queria acordar a olhar para elas. Era uma paixão. E tinha imenso gosto. Ele dispunha muito bem as obras. Era ele que organizava tudo em casa. Tinha uma espécie de torre de marfim, no sótão de casa, onde estava tudo organizado e tinha as outras paredes cheias, de cima a baixo”. Descrição reforçada por Marina Bairrão Ruivo, directora do Museu da Fundação Arpad-Szenes-Vieira da Silva, que nos diz que em casa de Jorge Brito “havia quadros por todo o lado e sabia exactamente onde estava o quê. Cada coisa tinha um sítio para estar, não era de todo aleatório. Era uma pessoa que tinha uma intuição raríssima, além do dinheiro e da oportunidade, para se rodear do melhor e, mesmo em tempos difíceis, quando vendeu, ficou com o melhor”.
Inicialmente compra a prestações, muitas das vezes negociadas directamente com os autores, ou consoante as possibilidades que um determinado negócio ou a disponibilidade do momento ofereciam. Podemos afirmar, com segurança, que é do contacto directo com o meio que é feita a sua aprendizagem. E é da conjugação desse contacto com o campo da arte nacional, seguramente informado pelo que poderia observar internacionalmente, que se apercebe do papel que poderia ter social e culturalmente.
Paula Rego. Salazar a vomitar a Pátria. 1960. CAMJAP - FCG. Foto: Mário de Oliveira
Até à década de 60, não existe em Portugal um mercado de arte instituído, e mesmo a aparente instituição desse mercado a partir de finais desta década revela as suas fragilidades no período após a revolução de 25 de Abril de 1974. São conhecidas as dificuldades dos pintores portugueses ao longo da primeira metade do século XX, com especial ênfase na década de 20, em que as exposições decorrem sem efectivar uma única venda. Com a ligação de António Ferro a Salazar, iniciada na década seguinte, é possível inverter pontualmente esta situação. Contudo, a situação continuava débil. As exposições promovidas pelo SPN, mais tarde SNI, constituindo um escape ao gosto de raiz oitocentista não são suficientes para alavancar uma actividade cuja pujança esteve desde cedo associada à capacidade de venda dos autores em circuitos alternativos, longe, inclusivamente, da “Política do Espírito” de António Ferro. Com o fim da II Grande Guerra e, depois, com o afastamento de António Ferro, a situação torna-se cada vez mais precária. O regime não encara a actividade artística como até então, seja por não necessitar do poder de propaganda que esta lhe oferece ou por a considerar perigosa para a sua manutenção. Ao mesmo tempo, continua a não existir em Portugal um Museu de Arte Moderna capaz de albergar a produção da primeira metade do século.
É neste contexto que Jorge Brito consegue, a partir de finais da década de 60 do século XX, aquilo que não fora possível até àquela data, fruto de um desafogo financeiro que uma sucessão de negócios concluídos com êxito lhe oferece, permitida ainda pela abertura do regime ditatorial ao longo da Primavera Marcelista, ainda que esta se tenha esgotado rapidamente. Desenvolve, então, a ideia de agitar as águas e inicia uma actividade intensa de compra de pintura portuguesa em quantidade, embora atentando sempre à qualidade dos objectos adquiridos. Segundo Arlete Alves da Silva, “Jorge Brito era um homem superiormente inteligente e soube rodear-se da melhores pessoas” para prosseguir este objectivo, “foi o motor de desenvolvimento das artes em Portugal”. João Teixeira explica-nos ainda que “o Jorge fez subir o mercado da arte, mas não porque pretendesse vender. Nunca quis vender nada. Ele queria valorizar a arte portuguesa”.
Júlio Pomar. Cegos de Madrid. 1957. CAMJAP - FCG. Foto: Mário de Oliveira.
A ideia de criar uma fundação acaba por ser também um dado fundamental para o alargar da colecção que vinha constituindo, cujo programa tinha como grandes linhas de força a agregação e valorização das obras de Amadeo de Souza-Cardoso, Eduardo Viana e Almada Negreiros como marcos da primeira geração modernista portuguesa. Depois, essencialmente, Júlio Pomar e Vieira da Silva como os grandes pintores contemporâneos. Segundo Arlete Alves da Silva, “a ideia de Jorge Brito era fazer uma história da pintura portuguesa. Começa no século XIX, com o Grupo do Leão, e acompanha-a a partir daí. A pintura estrangeira servia, essencialmente, para valorizar a colecção e não para acompanhar a história da arte. Com a fundação queria fazer um museu de arte contemporânea, uma vez que não havia”.
A pintura do século XIX tinha, portanto, um grande peso para a definição da História da Arte portuguesa mais recente. Reunia cerca de 70 pinturas de Silva Porto, dez de José Malhoa, algumas de Marques de Oliveira, uma de Henrique Pousão, encontrando-se igualmente representados António Carneiro, Alfredo Keil, João Vaz. É também nos anos 60 que compra colecção Augusto Abreu e os quadros do Grupo do Leão que pertenciam a Francisco Ramos da Costa, que se encontrava exilado em Paris, no primeiro negócio de Jorge Brito intermediado pela Galeria 111. Por sua vez, a compra de pintura internacional, capaz de conferir um prestígio adicional à colecção, pontuava essencialmente o século XX com obras de Robert e Sonia Delaunay, Dufy, Max Ernst, Magritte, Poliakoff, Chagall, Paul Klee, Giacometti e Picasso, este último comprado por compartição a um marchand suíço. Aliás, Jorge Brito era conhecido como coleccionador não só em Portugal, como no estrangeiro. Como nos disse Clara Ferreira Marques, “Jorge Brito foi uma referência no mercado do coleccionismo. Ia à Sotheby’s, sobretudo, mas também à Christie’s e outras galerias de Londres. Recordo-me que sabiam perfeitamente quem era. Marcou uma posição mesmo a nível internacional”.
António Carneiro. Nocturno. 1911. CAMJAP - FCG. Foto: José Manuel Costa Alves
É no que concerne à pintura modernista portuguesa que a actividade então iniciada por Jorge Brito adquire um valor incontornável. Segundo João Teixeira, Jorge Brito “aposta numa coisa. A pintura estava desvalorizadíssima e havia muita coisa a estragar-se. A Brasileira tinha os quadros todos cheios de nicotina, alguns estavam por cima dos sítios onde se fazia o café e, com o calor, quase irrecuperáveis. Havia muita coisa a estragar-se na província, também em cafés, e não eram conhecidos. O Jorge resolve dar um pontapé nas coisas com a ideia de mais tarde ter uma fundação ligada ao Banco e dedicada à arte portuguesa”. Avançando para a compra e reunião de obras dispersas em Portugal, mas também para o restauro, adquire o conjunto de telas da Brasileira do Chiado ainda recuperáveis, a colecção de quadros de António Soares que se encontrava no York Bar e compra, igualmente, os quadros do Bristol Club. Trabalhando com a Galeria 111, anexa ainda à sua colecção quatro obras de Almada Negreiros que decoravam a Alfaiataria Cunha. Nunca tendo convencido a viúva de Amadeo Souza-Cardoso a vender-lhe obras do pintor, consegue, no entanto, negociar com sobrinhos a aquisição de três quadros. João Teixeira, que foi diversas vezes intermediário de Jorge Brito, tratou também desta compra de obras de Amadeo, reforçando o avançado grau de deterioração em que se encontravam: “A tinta estava toda a cair, tive que trazê-los com algodão em cima, para protegê-los com algo pouco pesado, e agora estão recuperados”.
Jorge de Brito tinha a consciência de que se o preço da pintura subisse, a própria valorização pecuniária das obras faria com que fossem encaradas com um outro cuidado. Assim, tenta contribuir para a subida de preços: o valor atingido pelo retrato de Fernando Pessoa, pintado por Almada Negreiros para o restaurante Irmãos Unidos, em 1954, constitui o momento impensável que marca a política de aquisições e o sucesso que o programa de Jorge Brito conhece, não só pela soma final de 1300 contos, mas pela disputa em leilão que representa. O que confirma as palavras de João Teixeira quando nos diz que Jorge Brito “queria valorizar, por isso comprou o Almada e depois ofereceu-o logo” ao Museu da Cidade de Lisboa, onde hoje se encontra. Na verdade, este momento é considerado por Raquel Henriques da Silva como marco simbólico da solidificação do mercado da arte portuguesa do século XX, depois abalado pela revolução de 25 de Abril de 1974. E com ela, embora por razões ligadas aos negócios que Jorge Brito mantinha enquanto banqueiro, inicia-se um período descendente da colecção.
O arresto por autoridades espanholas de um conjunto importante de obras à passagem da fronteira transmontana entre Portugal e Espanha, anteriormente avaliadas em milhões de dólares - entre elas cerca de 80 pinturas de Vieira da Silva e 100 obras de pintura estrangeira -, é apenas um episódio deste período conturbado da vida de Jorge Brito em que chega, inclusivamente, a estar preso durante dezoito meses.
CAMJAP e FASVS
Envolvido numa luta judicial com o Estado português e numa situação financeira de menor desafogo, vende parte da colecção internacional que detinha e negoceia com a Fundação Calouste Gulbenkian um conjunto importantíssimo de pintura e desenho modernista portugueses. É através desta compra que o Centro de Arte Moderna consegue apresentar à data da sua inauguração, em 1983, um grupo vasto de obras, capaz de obedecer aos objectivos traçados e de fornecer uma via de entendimento para arte portuguesa do século XX, suprindo a longa falta de um Museu de Arte Moderna ou Contemporânea em Portugal.
Almada Negreiros. Auto-retrato em grupo. 1925. CAMJAP - FCG. Foto: Paulo Costa
Em negociações sempre difíceis e com escolhas constantemente refeitas por Jorge Brito, sobressaiu a vontade de não vender, que evidenciou desde que começou a reunir a colecção de pintura, revelando uma extrema dificuldade em desfazer-se de peças que conhecia minuciosamente. Deste modo, estava à partida acordado que o coleccionador excluía cerca de 50 a 60 obras do seu acervo de pintura moderna. As restantes, aproximadamente 1600, seriam escolhidas uma a uma, ora para a Fundação, ora mantendo-se na posse de Jorge Brito. O processo de escolha foi conduzido, da parte da Fundação Calouste Gulbenkian, por Sommer Ribeiro, futuro director do Centro de Arte Moderna, que, de acordo com João Teixeira, estaria apoiado por Paulo Ferreira, “um pintor dos anos 40, da época da exposição do Mundo Português, que foi para Paris. O Jorge comprou também as coisas do António Ferro. Foi buscar peças às colecções principais antes que se dispersassem, portanto a Gulbenkian teve-as ali. O Paulo Ferreira tinha ido para Paris pela mão do António Ferro para dirigir a Casa de Portugal e antes de morrer estava como director do Centro Cultural da Gulbenkian em Paris. Era um homem que sabia imenso, trabalhou com a viúva do Amadeo, também na Casa de Portugal, e foi ele que negociou com a viúva e outros, como o Francis Smith”.
Em representação de Jorge Brito estava, então, João Teixeira, que já havia apoiado o coleccionador no processo de aquisição das três pinturas de Amadeo e das que se encontravam no Bristol Club. Para além dos autores já referidos, a colecção de Jorge Brito congregava ainda, a título de exemplo, obras de Mário Eloy, Francis Smith, José Escada, Joaquim Rodrigo, Paula Rego ou Noronha da Costa.
No processo, e por ocasião da morte do pintor Carlos Botelho em 1982, Jorge Brito doa à Fundação Calouste Gulbenkian cinco obras deste pintor sobre temas lisboetas, realizadas entre 1933 e 1948, e dois cartões de Vieira da Silva, provas das tapeçarias feitas para o concurso da Universidade de Basileia em 1954-55. Já em 1984, no final das negociações das obras adquiridas pelo CAM, Jorge de Brito doa ainda duas pinturas de Almada Negreiros de 1925, Auto-Retrato em Grupo e Banhistas, ambas encomendadas para a Brasileira do Chiado.
Carlos Botelho. Lisboa. 1969. CAMJAP - FCG. Foto: José Manuel Costa Alves
Anos mais tarde, a colecção de Jorge Brito volta a ser fundamental para a constituição da Fundação Arpad-Szenes Vieira da Silva. Provavelmente o principal coleccionador privado de obras da pintora a nível mundial -- teria entre 80 e 120 peças --, negoceia em 1994 com Sommer Ribeiro um empréstimo à FASVS, a pedido de Mário Soares, segundo o próprio. A directora do Museu da FASVS, Marina Bairrão Ruivo, conta-nos que Jorge Brito por vezes “queria umas em casa e depositava outras. Porque, de facto, era de uma enorme generosidade, por uma razão muito especial, penso, de amizade com José Sommer Ribeiro, primeiro director desta casa. No fundo, foi com ele que este acordo de depósito foi feito”.
No Museu da FASVS encontra-se ainda depositado um conjunto importante de 16 pinturas de Vieira da Silva, sem as quais a Fundação perderia muito do seu valor cultural. O conjunto compreende obras entre as décadas de 50 e 70, como A Cidade Cinzenta, de 1953, La Ville Martyre de 1957, Novembre de 1958, La mer de 1961, entre outras que foram sempre circulando. Segundo Marina Bairrão Ruivo, “houve alturas em que se percebia que era para fazer um negócio, mas depois muitas voltavam. Parece-me que até nisso Jorge Brito foi muito inteligente, porque vendia mas ficava sempre com o melhor para ele, e das coisas de que gostava muito não se desfazia”.
Com efeito, em 2006 a morte inesperada de Sommer Ribeiro e de Jorge de Brito coloca um problema à FASVS, uma vez que funcionariam ambos como garante do acordo de empréstimo, como é explicado em entrevista do herdeiro de Vieira da Silva e membro do Conselho de Administração da FASVS, Jean-François Jaeger, ao Diário Notícias. Depois de um longo debate com expressão na imprensa portuguesa, estão ainda em curso as negociações acerca deste espólio. A directora do Museu mostra-se mesmo “bastante apreensiva, porque o Museu sem aquele núcleo de obras fica extremamente fragilizado dado que não tem outras obras daquela importância. Eventualmente conseguiríamos substituir, uma vez que existem muitas Vieira da Silva bastante boas noutras colecções, tanto de instituições como particulares, mas não seria a mesma coisa”.
Vieira da Silva. Cartão para tapeçaria da Universidade de Basileia. 1953. CAMJAP - FCG. Foto: Paulo Costa
A importância da colecção de Jorge Brito para o estudo e exposição da arte portuguesa revela-se ainda, por exemplo, com o empréstimo de obras para a exposição de Eduardo Viana, no âmbito da Europália Portugal em 1992 e, no ano seguinte, para a retrospectiva dedicada a Silva Porto no Museu Nacional Soares dos Reis. Embora sendo reconhecidas as dificuldades em negociar os empréstimos com Jorge Brito, a verdade é que desde início manteve duas formas de encarar a colecção que foi constituindo. Por um lado, tinha sempre bastante relutância em vender as suas obras, principalmente aquelas a que reconhecia maior qualidade. Por outro, não obstante esta relutância, foi sempre doando obras, o que acontece desde logo com o Retrato de Fernando Pessoa, oferecido ao Museu da Cidade. Por esta altura, diz mesmo que “as obras de arte têm a sua personalidade própria e aquele que verdadeiramente as ama deve procurar o seu legítimo e natural destino”. Anos mais tarde, quando se candidatava à presidência do Sport Lisboa e Benfica, Jorge Brito assume a sua posição enquanto homem de negócios. Numa entrevista concedida ao jornal Tempo afirma que “quem me conhece (...) sabe que, por norma, tenho aversão a vender e só especula quem adquire algo por baixo preço, para vender em situação artificial de mercado. Eu, quando realizo algo, tenho em mente criar riqueza, mas riqueza de que beneficie um maior número possível de pessoas. É essa a ambição do empresário num Estado moderno do mundo livre, claro”.
De certa forma, e disso beneficiaram o CAM e a FASVS, a política de aquisições que inicia ainda nos anos 40 do século XX e que torna mais sistemática e programada entre finais da década de 60 e a revolução de 1974 com o objectivo de criar uma fundação, permitiu não só o restauro de um conjunto de obras em risco de se perderem, como as valorizou pela animação de um mercado letárgico ao criar um todo coerente capaz de traçar um panorama artístico nacional dos últimos 150 anos. Por esta última ordem de razões, e reiterando a ideia inicial de “universo de crença” que caracteriza o campo da arte, vê-se reforçada a importância do acto de aquisição. Sendo um universo onde entram em acção múltiplos agentes na validação de um ou outro objecto, ou num conjunto, a colecção de Jorge Brito deixa uma marca histórica que, resultando das possibilidades, mas também condicionantes, que o tempo lhe foi oferecendo, exprime acima de tudo uma exímia capacidade em valorizar a arte portuguesa a partir do seu campo de acção.
[1] in L+Arte, nº 29 (Outubro 2006), p. 20.
[2] BORDIEU, Pierre, As Regras da Arte – Génese e Estrutura do Campo Literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 (2ª edição)
[3] Pinharanda, João de Lima. O declínio das vanguardas: dos anos 50 ao fim do milénio, in PEREIRA, Paulo (dir.). História da Arte Portuguesa, vol 10 – O declínio das vanguardas. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2008. p.103.
[4] Optou-se aqui por cobrir com esta designação toda a pintura moderna portuguesa do século XX, apesar da distância que separa, a título de exemplo, António Soares de Joaquim Rodrigo. O mesmo, poderá ser referido em relação à pintura naturalista portuguesa, embora a ordem de razões não coincida. São termos utilizados apenas pela sua força operativa.
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Agradecimentos
Arlete Alves da Silva
Afonso Ramos
Clara Ferreira Marques
CAM - FCG
João Teixeira
Galeria 111
Maria Coutinho
Mariana Teixeira
Marina Bairrão Ruivo
Patrícia Rosas
Raquel Henriques da Silva
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Depoimentos
Directora do Museu da Fundação Arpad-Szenes - Vieira da Silva, Marina Bairrão Ruivo
Sei que tinha mais do que as Vieira da Silva que estiveram aqui. De facto tinha um conjunto notável de obras da Veira da Silva. O Jorge Brito foi, ou terá sido, o maior coleccionador de obras da Vieira da Silva...talvez não só em Portugal, mas como coleccionador terá sido sem dúvida.
Em catálogos antigos, isto em relação às Vieira da Silva, aparece muitas vezes o nome do Jorge Brito. Antes não se importava de pôr o nome, mas a partir de dada altura preferiu colocar como colecção partiular. Quando ainda vivo, vinha cá muito e por vezes pedia para mudar as tabelas e pôr como colecção particular. Depois telefonava e pedia para alterar outra vez. Portanto, era como ele. Por vezes queria umas em casa e punha cá outras e nisso era de uma enorme generosidade. De facto era muito especial, penso que por uma razão de amizade muito forte com o José Sommer Ribeiro, que foi o primeiro director do Museu e no fundo foi com ele que este acordo de depósito foi feito, ele mesmo quando queria tirar coisas punha cá outras. Nunca deixou a Fundação ficar sem nada, antes pelo contrário. Como tinha muitas e de qualidade sempre conseguimos que deixasse cá um núcleo importante.
Geralmente não dava razões para levar as obras. Porvezes entendia-se, pela conversa e pelas pessoas que o acompnhavam que podia tratar-se de vendas, mas muitas vezes se percebeu que não vendeu. Toda a gente sabe que vendeu muito, Vieira da Silva inclusivé, porque passou um mau bocado depois do 25 de Abril e, eventualmente, também por razões de saúde anos mais tarde. Por intuição, porque não era eu que lidava directamente com ele, era o Sommer Ribeiro, mas via-o e, muitas vezes, percebia que podia ser para negócio e as obras voltavem. Tenho ideia que até nisso foi muito inteligente. Vendeu, muito, mas ficava sempre com o melhor para ele. E as coisas de que gostava muito não se desfazia.
Sabia exactamente...em casa dele, imagina, havia quadros por todo o lado e ele sabia exactamente onde estava o quê e cada coisa tinha um sítio para estar. Não era de todo aleatório. Tinha, de facto, uma intuição raríssima, além do dinheiro e da oportunidade, claro, mas teve uma intuição muito importante para se rodear do melhor. E, mesmo em tempos difíceis, quando vendeu ficou com o melhor.
Uma coisa que se deve ao Jorge Brito...nunca ninguém escreveu ou homenageou. Ele era uma pessoa bastante secreta, ou seja, também nunca deu a entender o que tinha muito claramente, mas nunca lhe foi dado o papel que teve.
Nesta fase temos dezasseis obras dos herdeiros e, das dezasseis, nem todas terâo a mesma importância, mas as melhores ainda estão cá. Exceptuando o Maio de ’68, a Bataille des Rouges et des Bleus..aqueles que me partiam o coração quando saíam. As restantes estão cá à espera que se resolvam as negociações entre o Estado e os herdeiros. Mas não sei como será e estou bastante apreensiva porque este Museu sem aquele núcleo de obras fica estremamente fragilizado. Na colecção não temos obras daquela importância e, eventualmente, é evidente que conseguimos substituir porque existem muitas Vieira da Silva muito boas noutras colecções, tanto de instituições como de particulares. Mas não era a mesma coisa. Este conjunto ou, enfim, parte deste conjunto tem uma qualidade e uma razão para estar aqui...enfim, não é nosso mas seria muito importante que pudessem ficar no Museu, assim possa o Estado resolver o problema de os adquirir ao longo do tempo ou de que forma chegarem a um acordo. Era muito importante que parte destas obras pudessem ficar aqui.
Aqui, desde 1994, há cerca de quinze anos [que se diz que as obras deviam ser compradas], e de facto quando o Museu abriu não se vivia mal. Enfim, havia dinheiro, são obras muito caras e muito importantes, mas eventualmente ir comprando uma ou outra. Penso que a ideia era que mesmo empresas pudessem ir adquirindo e deixado cá em depósito. Agora é que é inviável, em épocas de crise torna-se mais difícil. Numa época de crise mesmo os mecenas fixos foram-se embora e estamos, nós e os outros museus, numa situação complciadíssima. Em teoria podia ser fácil resolver, mas confrontados com os problemas no dia-a-dia... Infelizmente nã há bicha à porta como noutros países haveria, mas isso é outra questão, mas é evidente que vêm muitos estrangeiros que querem ver boas Vieira da Silva. As exposições temporárias são mais para a população de Lisboa ou portuguesa, agora quem vem de propósito ver o Museu da Vieira quer ver obras de qualidade.
Isto é um à parte, mas também tivemos cá muitas obras do Arpad da colecção Jorge Brito. Mas como temos uma excelente colecção de Arpad Szenes nunca se nos pôs o problema...havia algumas que vinham para uma exposição, ficavam, mas acabaram por sair todos. Não nos causou problema porque temos uma boa colecção, até pela maneira como o Museu foi criado. Na altura a Vieira da Silva, ainda viva, deu muitos mais do Arpad..também penso que teria intenção de dar mais dos dela, mas acabou por morrer antes de a obra estar concluída. Isso foi para nós um grande handicap, porque se fosse viva as coisas teriam sido como a Vieira da Silva desejaria e ela acompanhou todo o processo. Penso que teria gostado de ver o Museu concluído antes e para nós também teria sido completamente diferente. Ela própria tinha uma colecção notável e teria deixado muito mais. Mas não aconteceu e esta é a realidade.
A colecção Jorge Brito teria muitas mais [pinturas da Vieira da Silva], também muito boas, algumas nunca passaram por cá. Eventualmente eram os que mais gostava. Nós vamos sempre tentando actualizar o catálogo, mas há muitos que não sabemos há quanto tempo passaram pela colecção...temos catálogos mais antigos onde aparece a referência.
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Clara Ferreira Marques
Começámos a trabalhar, em parceria, em 1995. Fazíamos uma escolha tentando gerir a venda de peças importantes com outras de menor valor, começando-se os leilões da colecção Jorge de Brito. Nesse ano, o senhor Jorge Brito já tinha feito os negócios com a Fundação Vieira da Silva - Arpad Szenes, com o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, onde alienou grande parte da arte portuguesa da colecção, e já tinha resolvido o problema de Espanha, onde tinha uma boa parte do património apreendido. No 25 de Abril, o senhor Jorge Brito tinha tentado tirar parte do seu património de Portugal, para vender lá fora, e vários contentores ficaram apreendidos em Espanha. Foi um processo que durou anos, porque quem se encarregou do transporte das peças a certa altura, por ter tido problemas, começou a alegar que as peças eram dele e não de terceiros, e acabaram por ficar guardadas no Banco Popular de Espanha até 1994. Quando começo a trabalhar com Jorge Brito essa grande quantidade de peças, que eram destinadas ao mercado internacional, também já tinham sido vendidas a um marchand ou antiquário português, que trabalhava com um marchand americano e outras galerias.
De pintura estrangeira não teve muitos quadros, mas teve muito bons. Tinha algumas centenas, quer dizer, mais de cem quadros de certeza. Tinha Max Ernst, dois Picassos do período rosa e do período azul, Poliakoff, Chagall, Raoul Duffy...mas só sei que os teve e que os vendeu, antes de 1995, que foi quando eu apareci. Nessa altura tinha acabado de negociar os Poliakoff, cerca de vinte. Ele vende grande parte quando recebe os contentores que estavam apreendidos em Espanha. Julgo que no 25 de Abril ainda conseguiu passar muitas coisas para fora e depois pediu o transporte de contentores, que acabaram por ser apreendidos, onde estariam também as porcelanas. Penso que a grande preocupação dele foi levar mais peças com cotação internacional. Todas essas peças voltaram ao fim de 20 anos e rapidamente foram vendidas.
Portanto, a parte internacional também já tinha sido entregue. Nessa altura a colecção era constituída, basicamente, por pintura portuguesa. Mas havia mais naturalistas porque o Jorge Brito tinha comprado, nos anos 60, julgo, uma grande colecção de pintura a um outro coleccionador que era Augusto Abreu. Foi essa colecção que acabei também por negociar, portanto, colecção Jorge Brito – antiga colecção Augusto Abreu. O senhor Augusto Abreu era do Porto e propôs-lhe a compra de cerca de mil e tal, duas mil obras. Praticamente quase todas de pequeno formato, mas obras significativas do Marques de Oliveira, Silva Porto, Columbano, os grandes mestres naturalistas.
Fizemos um acordo tácito. Ele queria vender, mas não queria dizer que as peças eram da sua colecção, e eu estava obrigada a não revelar e punha nos catálogos colecção Augusto Abreu, mas as peças vinham reproduzidas em alguns livros e sabia-se que eram da colecção Jorge Brito. Foram vendidas com algum critério, duas ou três peças boas e vinte ou trinta menos boas – não eram más porque não tinha peças más, eram menos importantes. Foi um caminho traçado à partida: não vamos vender as peças boas todas de início porque o mercado inundado com as melhores obras que possuía e fazia baixar a cotação. Vendemos até finais de 2005, princípios de 2006.
O Jorge Brito nunca quis dizer de quem eram as peças. Lá fora refere-se a proveniência, e esse é um factor de valorização algumas vezes e eu mesma disse-lhe isso, que há uma mais-valia. Era uma colecção credível, apetecível, com qualidade. Mas nunca quis, porque era uma pessoa especial, de certa forma vaidosa, e não gostava de ver-se como vendedor porque quase toda a vida foi um comprador compulsivo. Entrava numa exposição e comprava-a inteira. Fez isso com Vieira da Silva e com outros pintores a quem comprava nos ateliers. Ele gostava de aparecer como grande comprador e coleccionador, e não como vendedor. Também teria problemas pendentes e não interessaria que se soubesse que estava a alienar património e isso obrigava a um olhar atento ás peças que eram vendidas.
A grande colecção era de facto de pintura, mas depois como bom coleccionador que o senhor Jorge de Brito de facto era, gostava muito de porcelana da China, Companhia das Índias. Tinha realmente muita coisa, já não conheci, mas sei que parte das peças que tinham sido apreendidas em Espanha e estiveram à guarda do Banco Popular, foram vendidas para um negociante americano através de um comerciante português: um serviço da Companha das Índias de folha de tabaco, peças com armas portuguesas...não era a típica colecção de peças da família rosa, eram peças escolhidas. E também móveis portugueses, mas não era um amontoador. Tinha os móveis portugueses que decoravam uma casa grande, como aquela em que vivia, e depois quando mudou para uma casa mais pequena, manteve alguns que constituíam a decoraçãos das casas e eram escolhidos a dedo. Basicamente móveis portugueses, embora tivesse alguns estrangeiros.
No total entre pintura e objectos teria cerca de 3000 peças, se contarmos os livros. O Jorge Brito fez também um grande leilão na Alemanha com a sua biblioteca que era a antiga biblioteca/colecção Comandante Ernesto Vilhena, onde escoou o peso importante da Bilbioteca. O restante, digamos, fui eu que vendi em Portugal. Esse leilão, na Alemanha, terá sido nos anos 80. Terei vendido entre 800 e 1200 peças, excluindo a Biblioteca. Fizemos alguns leilões só da colecção Jorge Brito, mas eram leilões pequenos com 100, 120 lotes.
O senhor Jorge Brito tinha uma grande preocupação em comprar peças com qualidade, aliás, chegou a pôr antiquários e galeristas em Portugal e Londres a procurar peças para ele. Fazia-se leilões, montava-se leilões, fazia-se exposições e ele punha duas ou três pessoas a licitar a mesma peça para ele, o que fazia alguma confusão. Isto segundo me foi dito, dado que já não é do meu tempo, mas essa ideia fazia alguma confusão porque quem está licitar à partida quer o melhor preço, portanto não sei se seria porque era um comprador compulsivo que gostava muito dos objectos ou se queria, também, fazer a cotação. Porque se tinha várias obras de um pintor, interessava que subisse o seu valor.
Não havia um registo da colecção, um inventário. Esse fi-lo eu, arranjei pessoas para o fazer, por causa da Biblioteca, mas não havia um inventário. Houve tentativas, mas nada muito bem organizado ou que correspondesse inteiramente ao que existia pelo que me apercebi, pelos papéis que pude ver. A seguir ao 25 de Abril tudo aquilo é inventariado pelo Estado português, através de pessoas que foram mandadas para casa dele, mas não me parece que seja pormenorizado e bem feito. Esse inventário servia como suporte de papel para se identificarem obras, mas não abrangeria tudo.
Durante os anos todos que nos demos fui-me apercebendo que ele de facto tinha tido muita coisa, e muitas coisas boas. Fui-me apercebendo também por conversas com o João Teixeira, que foi uma pessoa que viveu muito perto dele na constituição da colecção porque lhe comprou muitas peças, indicou muitas pessoas, falou-lhe de pessoas que queriam vender e o Jorge encarregava-se de as comprar ou mandar comprar. Mas haver registos... eu sabia porque ele dizia e havia pessoas a confirmar que ele tinha, que as tinham visto.
Com as obras que vendeu à Gulbenkian, teria em pintura mais de 3000 peças. Em porcelanas e móveis, algumas centenas... Com aquilo que foi vendido, os tais contentores que eu nunca cheguei a ver mas tomei conhecimento - o processo de Espanha era uma coisa de que se falava - à volta de mil e tal, com três ou quatro contentores... A colecção de moedas, por exemplo, já tinha sido roubada. Disse-me que as tinham roubado, mas sabe-se que vendeu algumas ao Banco de Portugal. Sei também de uma colecção de chaves de relógios, que estavam dispostas num móvel francês do séc. XVIII que comprou em Paris. Lembro-me de ter dito que também isso tinha sido tudo roubado.
Ele quando queria as coisas não largava, comprava. Fosse com quem fosse, comprava. De facto teve uma grande coleção, não só de arte portuguesa, porque comprou muito também lá fora. A partir dos anos 60 comprou coisas muito boas, mas essas são as tais que desapareceram. Umas são levadas para fora no 25 de Abril e permitem manter à família e retomar a sua actividade, dentro de alguns limites. E outras que foram apreendidas e que, quando o conheço, tinha acabado de vender há uns oito, dez dias.
Julgo que foi a grande referência como colecionador a nível internacional. Se não o conhecessem fisicamente, conheciam-no de nome. Foi uma referência no mercado, lembro-me de ter ido com ele à Sotheby’s e à Chritstie’s, e também a algumas galerias em Londres, e recordo-me que as pessoas sabiam perfeitamente quem era. Foi uma referência no mercado do coleccionismo: o português que comprou bastante. E mesmo que não soubessem o que comprou, sabiam que o Mr. De Brito tinha comprado bastante. Tinha marcado de facto uma posição a nível internacional. Não sei se na altura dele havia muita gente a comprar pintura moderna e ele atirou-se a comprá-la e a comprar louça da China ao gosto chinês. Não só companhia das Índias, mas também o vaso Ming. Era um homem com outra visão.
Tinha uma sala só de arquivo para a pintura, mas as outras peças tinha-as todas expostas. Foi um grande coleccionador. Da segunda metade do século XX foi o grande coleccionador, sem dúvida. O Jorge de Brito, embora tivesse pessoas a comprar para ele, intervinha directamente. Também sabia, tinha referências, tinha informação e habituou-se a confiar nas pessoas. Se lhe diziam que era bom, era bom, e as pessoas não o enganavam, havia muito cuidado.
Antes de eu aparecer em 1986 o mercado de leilões e o mercado de arte eram muito elitistas. Não eram à porta fechada, mas quase. E quando eu apareço democratizo-o de certa forma, há acesso a toda a gente, é muito publicitado, muito falado. As pessoas vão para comprar peças de milhares ou de centenas, mas também vão comprar coisas de dezenas ou mesmo menores. Portanto há uma democratização na forma de fazer leilões, as coisas passam a ser feitas mais às claras. Por isso acredito que seja difícil [identificar os objectos da colecção]...no que diz respeito a Londres, onde o Jorge Brito comprou, em leilões públicos, aí há acesso. No que diz respeito a Portugal, devido ao mercado ser tão pequeno e a esta entourage que o rodeava que não era secreta, mas elitista...mas não se encontra muita coisa a não ser que se fale com pessoas que rodearam a colecção como no caso do João [Teixeira]. Registos não há muitos... No negócio com a Gulbenkian, por exemplo, sabe-se que foi muito dinheiro, na altura, e não se sabe muito mais. Mas atendendo ao preço a que depois vendeu as peças foram subavaliadas. Pegando na lista e vendo as obras de facto sabe-se que o negócio não foi muito bom para o Jorge Brito, porque tiveram à escolha a nata das natas do que se fez em Portugal e, comparando-o com o preço a que foram vendidas obras depois, não terá sido tão bom. O processo de vendas foi semelhante ao processo das vendas em leilão. Havia uma pré-escolha, ele depois dizia quais queria vender e mais tarde acabava por refazer e dizer que afinal não, este não vai e aquele também não...porque ele de facto gostava muito das peças.
Foi um homem inteligentíssimo, toda a vida dele provou isso, e no que diz respeito à arte também foi muito esperto, muito inteligente. Soube muito bem o que comprar. As duas coisas misturam-se, o factor negócio e o factor colecção estão sempre presentes: o amor que tinha à arte, mas também ao negócio. E provou-se depois que terá feito um bom investimento, porque negociou-as e foi mantendo a família depois do 25 de Abril com peças que vendeu lá fora. O banco, ficou sem ele, a Brisa também, ficou sem nada, mas as obras de arte permitiram-lhe manter o nível de vida ao longo do resto da vida. Acho que o correcto é pensarmos que ele comprou porque viu ali um bom negócio mas porque gostava, embora paralelamente tenha feito negócios. Foi também seduzido pelo lado boémio do mundo da arte e gostava das obras. Não há dúvida nenhuma que há negócio, mas ele gosta do meio. Ele falava disso muitas vezes, por exemplo, pegava num queijo flamengo, porque não havia dinheiro para comprar mais, e numa garrafa de vinho branco e levava para o atelier do Júlio Pomar ao final do dia.